quinta-feira, 10 de março de 2011

Orfeu e Eurydice

(Eurídice atira-lhe um beijo e sai).

Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
E' mais porque te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada...
E sabes de uma coisa? cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto, - que é que eu sei! essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem - nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! e me dizes essas coisas
Que me dão essa fôrça, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...
Coisa incompreensível! A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! criatura! quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres - que êle, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que eu estarei contigo!



Excerto da obra de Vinicius "Orfeu da Conceição".

Conheço de cor (de coração) esta obra musicada na voz de Bethania, há anos que passaram velozes. Revi estas palavras hoje, numa aula de Literatura Brasileira, onde me mantive arrepiada durante todo o monólogo declamado.
A obra de Vinicius é baseada num mito clássico "Orfeu e Eurydice". e o que me fez cativa desde sempre deste pedaço da mitologia é o amor absoluto de Orfeu (filho de Clio e Apolo - os nomes dos deuses podem variar) que tem o dom extraordinário da música que retira de uma lira. Apesar de ser assediado por todas as mulheres da Trácia, Orfeu apaixona-se por Eurydice que, certo dia, fugindo das investidas perversas de Aristeu, é mordida na floresta por uma serpente que a mata e a atira para o reino do Hades. Orfeu, desesperado pela morte da amada, decide resgatá-la e, com a sua lira, acalma Cereberus - o cão de três cabeças que guarda a entrada do reino dos mortos. sob a condição de nunca se voltar para trás para ver Eurydice, Orfeu consegue resgatá-la. porém, mesmo quase a chegar à Terra, Orfeu volta-se para trás e nesse momento, perde a sua amada para sempre. Chorando de dor, Orfeu rejeita todas as mulheres apartir desse momento. E é pelas mãos dessas mulheres da Trácia que ele sucumbe à vida.

Vinicius traz este mito para uma povo favelado, encostado num morro brasileiro, com personagens negras e de condições inferiores. Vinicius mostra como a música é uma linguagem universal e que tal como o Amor é sentido por todos , até por pobres e desfavorecidos e sem formação.

Arrisco-me a pensar que a ideia da peça tomou forma apartir deste monólogo.

e há tanta coisa que fica por te dizer. é para ti.

1'19/cheia