domingo, 26 de janeiro de 2020

a verdade das maçãs

Eu amava-te como amava as borboletas
Deixando-as ir mas sonhando com o jardim
a acordar pulverizado com o pó mágico
delas.

Odeio o pó: passar o dedo e deixar caminhos desunidos
no vidro riscado da mesa de cabeceira.


Eu amava-te como se amam os grandes escritores
Onde cada palavra é reinventada
papel higiénico, faca, sardas, pau.

Não suporto conhecer o outro lado do artista:
cuspe branco nos cantos da boca, mesquinhez no discurso.


Eu amava o teu sexo como se ama um professor
que forma a criança, o adolescente, o adulto.
Uma gerbera azul a florir na palma das minhas mãos.

As flores azuis do jarro são lindas mas já vão mortas.
Não terei tempo de as ver empalidecer.


Eu amava a tua boca como se ama o futuro,
as nossas línguas uniam-se em largos destinos
e eu afogava-me um bocadinho de cada vez.

A tua boca assimétrica é um quadro de Picasso.
Os espanhóis entediam-me.


Esperarei pelo tempo
recebendo as suas áridas descobertas
aceitando respostas sem ter questionado
sabendo, sem ter perguntado.
Esperarei pelo tempo das maçãs maduras
e pelo aroma doce da sua morte.



26 jan 20
4h25
Grammy's
Kobe

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Veias

Sento-me para escrever porque sinto que há algo para sair e que só ainda não encontrou o túnel de saída. Por isso, sento-me e permito-me. Abro "Autumn Leaves" porque costuma resultar. Geralmente vem sob a forma de lágrimas. Água que lava enquanto rola pela pele abaixo. Desta vez, porém, é diferente. Não choro. Há algo diferente. Talvez tenha surgido com o início do ano ou melhor, com o fim do ano retrasado. Onde antes chorava, hoje...não. Preciso de mais alguma distância para perceber o que quer isto dizer. Não me sinto morta. Pelo contrário, sinto a paisagem alterada. É também uma espécie de morte, talvez. Será? Mas ouço. Algo mexe cá dentro. Como um monstro gigante adormecido que de repente acorda e, por causa dos anos de hibernação, demora-se a erguer. Neste caso, o mostro são as placas tectónicas que constituem a minha personalidade. Sinto-as as rasgar e a desrasgarem-se umas das outras, criando um novo padrão como uma nova manta de retalhos.

Entrou agora o "Cinema Paradiso" com Chris Botti e Yo Yo Ma.

Nada. Ainda puxo da chávena de café com Love escrito num coração e sorvo um gole a dar algum tempo ao meu coração a ver se reage. Nada.

O som do mostro é o mesmo que o som do interior de um vulcão dias antes de explodir. Um som grave, uma espécie de rosnar mas sem a parte negativa. Será este o som do crescimento? Este ano começou: é novo e deve ser bom. Diferente, vai ser de certeza.

Sinto que não escrevi nada do que era suposto sair. Vou agora para estúdio e continuo com a veia entupida. Preciso de sangrar urgentemente. Temo que me vá esvair no pior momento possível. Costuma ser assim. Espero que este ano novo traga isto de diferente.



16,28/ 2 Jan 2019
"Emmanuel" Lucia Micarelli