segunda-feira, 14 de novembro de 2011

água

alguém disse que se resolvia com o tempo.
os dias vão passando, as horas, ao minuto. as emoções que tive contigo não se esvanecem por isso. há momentos tão densos que não há água que os lave da minha pele. horas há em que me apetece gritar e fechar os olhos com força para te voltar a ver, para dentro. água não há que leve pelo ralo da banheira, por muitos banhos que tome, este sufoco que a saudade me faz comprimir o peito. não há um local, uma forma de estar que me alivie da tortura de não te poder ver mais.
o tempo não resolve coisa nenhuma. o tempo tenta enganar a memória, mas é uma senhora a memória. lenta no seu caminhar e ágil quando quer esquecer de propósito.

quisesse eu que te esquecer fosse o seu propósito.

http://www.youtube.com/watch?v=OzrUs08-SWs


21h56/foz/palavras que não são minhas

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Heróis do Mar

se eu mergulhasse fundo e iniciasse a viagem submarina por mim adentro, iria perdendo a claridade da tona da água e tudo o que me era familiar, com a descida tornar-se-ía escuro e perigoso. será a intimidade individual perigosa? o que assustaria de início, a partir de certa altura, tornar-se-ía familiar e sistemático. mergulhar nos mares interiores e ultrapassar as correntes que nos afastam da luz de lá de cima é assustador e antagonicamente é sufocante. se chegasse ao fundo do mar e conseguisse passear por ele fora com as duas pernas, se aprendesse a respirar por guelras o que me era desconhecido passaria a ser a minha casa. até que ponto a minha condição humana não seria posta em causa?
se pudéssemos virar o nosso comportamento mundano para o exterior, até que ponto poderíamos alterar a vida das pessoas que nos rodeiam? o que é que eu posso fazer hoje pela próxima pessoa que eu encontrar pela frente, ainda que não a conheça?

vou experimentar mergulhar num mar nunca dantes navegado e lançar-me À Descoberta. Ser herói do meu mar e unir-me ao mar interior da próxima pessoa que eu encontrar À frente para formar um oceano. e se eu vivesse também nesse oceano juntamente com a pessoa com que me deparei? e se essa pessoa vivesse com a pessoa seguinte com a qual se deparou? este oceano de tantas águas misturadas seria universal mas a primeira gota seria portuguesa. esta gesta não é portuguesa, não lhe pertence por ser universal, mas cada portuguÊs tem este pingo de universalidade que lhe é inerente. ser portuguÊs é ser super homem: conseguem, aguentam, adaptam, resistem, ganham, criam, sobrevivem. ser portuguÊs é ser perverso por não jogar com as mesmas regras da morte e por subverter as regras da vida.

ser portuguÊs é mergulhar todos os dias e todos os dias aprender a respirar de uma forma nova.

00h22/heróis do mar

terça-feira, 20 de setembro de 2011

hino

- isto foi o que me pareceu ouvir:

"pudessem vocês saber que eu não estou de facto morto. estou a ver-te! como raio não se apercebem que eu não estou morto? isto também é novo para mim, caramba. aceito, que remédio, mas ajudem-me vocês também! eu não morri. ainda, pelo menos. ouço-te, Dinis! sei o que o teu irmão te está a dizer baixinho. ele continua preocupado com quem? ahh...dinis, dinis... tivesse ele a tua coragem. não me enganei quando te disse que fechei em chave de ouro. tens muito da tua mãe, mas também tens muito de mim. sempre ouvi os teus silêncios e percebi-os perfeitamente. nunca precisámos de palavras entre nós. sinto por cada um dos meus filhos que ainda não está tudo feito. a cada um dos teus irmãos, o trabalho não está completo, dinis. pudesses tu ouvir-me, meu filho. quero que saibas isto: se eu pudesse proclamar um seguidor, eras tu a quem eu confiaria o meu papel, filho. pudesses tu ouvir-me e saberias a pena que eu tenho de não ir a tempo de te dizer o quanto te amo, o quanto te admiro, o orgulho que tenho em ti, meu piruças. sempre tive. há um fosso entre nós e a tua boa disposição ajuda-nos a fechá-lo mas não é por mal, dinis. foi assim que fui educado, não me sei expressar de outra forma. e olha para a minha cara! até parece que me ouviste, dinis, vês o meu rosto pacífico? está tudo bem, filho, não estou a sofrer, estou vivo, estou aqui e estou sem dores. fica feliz por mim. pega-me na mão e não chores, pelo menos ainda. não é justo para mim e eu sei a pessoa justa que és. nisso sais a mim...

- foi isto. não sei se foi sonho se o que é que foi.



21h12/tasquinha

terça-feira, 26 de julho de 2011

A mentira maior

Faz hoje um ano.

Não é que os frutos sejam mais maduros de como os lembro, espremidos nos teus dedos e na forma como os levavas á boca. Faz hoje um ano mas não é por isso que corro mais lentamente na tua direcção. Este ano que passou não diminuiu a intensidade de luz com que acordo todos os dias que tu já não estás. Chegam-me laivos de ti nos sons que me entorpecem no ram-ram nos entretantos de vida que tu me atiraste. Faz hoje um ano que prostituo o meu tempo em mulheres tão vazias como eu e vendo ao desbarato dedicação e atenção em alguéns que não lhes reconheço sequer a voz.
Esta carta é para juntar á de ontem (porque o mail continuava vazio sem que ninguém soubesse de ti) , à de anteontem (quando entalei, sem querer, os gladíolos no elevador e destruí o meu único presente de aniversário para a tua mãe), à dos fins de semana (que a memória já mistura por nada ter que os diferencie).
Não é que a música já cá não entre. Ainda é um dos poucos canais onde consigo comunicar sem “talvez” ou “dependes”. Vá lá, tiveste a decÊncia de me deixar a música. Não sei se te odeie menos por isso. Mas é mentira, sabes que isso seria impossível: odiar-te era negar a mim próprio o direito de me amar. Continuo a errar; porém não é por isso que sou o erro. Não sou atormentado pela realidade porque ela não existe para mim. Eu não existo para ti,sequer. É o significado que lhe estou a atribuir que me mantém no teu encalço. Tu és a representação do amor maior. Não te iludas, meu amor. Não fiques cismada. Eu olho e vejo mas é porque me convenço. E chega-me.

Há neste tempo uma euforia de cores e rituais. Traz o calor vontades e desejos que vêm diluídos nas brisas de fim de tarde como uma poeira fina e que pousam nos cabelos e nos dentes das pessoas quando riem de coisas que não ririam numa qualquer outra altura. Imagino este pó de estrelas a escorrer num banho de luz pela tua pele abaixo e a vir pousar nas palmas das minhas mãos em forma de concha. Nunca quis perder um bocadinho que fosse de cada gesto teu. Sempre que te tinha à minha beira, e só falo assim porque sei o quanto achavas piada a esta expressão - à minha beira. Já não te tenho à minha beira. Nem sei quem te terá à beira, mas não é à minha. Os junquilhos que plantaste não duraram um mÊs. É só para que saibas. Para não ficares feliz. Não suporto a ideia de estares feliz. Quando deres por ela, voltas para mim e o caminho que percorro na tua direcção, fa-lo-ás tu, de frente para mim. Não vieste inventar nada. Há sempre um voltar ao sítio onde se foi feliz e é por isso que não me desespero. A gente encontra-se, de caminho. Abandonei a minha cidade há 15 anos e dou por mim ainda sentado em expressões como esta: de caminho

de caminho faço isso
vou de caminho, vou já

O prazer com que volto à minha língua é quente e reconfortante. Ela embala-me. Reduz, em expressões que já ninguém usa, o conhecimento absoluto de só quem passou é que sabe. Hasteio com gáudio o meu sotaque com que te cativei. Tenho arvorado no meu discurso, a força de uma raça que se recusou a calar. Eu sei que não fui eu quem te cativou, foi esta força de ser das minhas gentes. Devo agradecer a quem? Isto anda comigo, sempre. Ao contrário de ti, que te arrasto comigo: e és mais pesada ausente do que se estivesses de facto aqui.
O prazer de voltar a ti é o sacrifício de uma vida. É uma espera silenciosa e bizarra quase. Voltar a ti é um destino que eu decidi. Parece contraditório mas fiz de ti o meu capricho. O dizer “não” tem que ver com a pessoa que o diz. Não tem nada que ver comigo. E se assim foi, é porque naquela altura tu tiveste motivos próprios, só teus, para me dizeres que não. Tu não tens o dever de me divulgar as tuas razões, mas eu posso ficar magoado. E é por isso que te aguardo como o Tigre de Pablo Neruda ( http://www.youtube.com/watch?v=EwbVdXzm1bA ). As horas seguem e eu sigo com elas. Não te minto se te digo que a cada dia que passa, fica mais fácil. Não é mais fácil. Às vezes o peito comprime e dói tanto que só me apetece arrancar o coração com as próprias mãos e mesmo de ferida aberta, aliviar a dor. Não te minto se te digo que já me questionei se valerás a pena. Se vales a minha vida em troca mesmo sabendo que não és um resultado adquirido. Eu não sei se te voltarei a ver e aqui está a tua contínua vitória sobre mim. Se me pudesses ver neste momento, não me reconhecerias. A verdade é que ainda tremo à passagem de um pensamento teu. E se, por um lado, sou o tigre selvagem, a tua beleza enjaulou-me num abraço. Tens-me cativo por um beijo de despedida que, coitado de mim, não percebi que era para sempre. Mas só a ideia de te ver curvada pelo teu orgulho, rebaixada pelo arrependimento e com a palavra “desculpa” pendurada por um fio de saliva, alimenta a minha ira. Anula qualquer tremor de saudade. Deves-me isso. Deves-me uma vida de desespero. Deves-me uma vida arruinada e despedaçada. Quero-te ver a arfar de desespero. Quero-te ver apática perante a beleza do riso das pessoas que riem por rir. A verdadeira felicidade é ser feliz sem ter motivos. Hás-de ver a poeira mágica no ar e hás-de ser incapaz de lhe tocar. E por tudo isto, aguentarei. Velarei noite e dia, como o Tigre de Neruda, para te dizer que te perdoo.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

gota

tenho um homem-poema sentado, atrás de mim, nas minhas costas. é um poema feito homem, feito de fumo, sentado numa poltrona, no canto do quarto. não se mexe mas olha-me fixamente e com um sorriso pincelado. não se percebe bem os extremos do corpo. esfumam-se as mãos cruzadas nos joelhos e não tem pés porque o corpo evapora-se a partir das canelas para baixo. esse homem é quem me acompanhou toda a minha vida, enquanto fui gente. é o homem que não tosse quando lhe digo que "quero ter um filho hoje" mas me pergunta a seguir se eu quero que ele vá para a catequese, quando tiver idade. o meu homem-poema assemelha-se ao pessoa de "o ano da morte de ricardo reis". o meu homem tem sempre um poema para me responder. o meu homem-poema tem olhos azuis e impacienta-se com a vida quando não me tem no seu campo de visão, quando não me vÊ. tenho uma nuvem feita gente atrás de mim, no canto mais escuro do quarto e sempre que me volto para o ver, ele desaparece. por isso, desisti de olhá-lo de frente: sei que existe mas não vejo. é aquilo que eu amo, que desejo viver com. sou-lhe de uma fidelidade canina e creio no meu sentimento como se fosse um provérbio popular.

mas

vezes há, em que eu gostaria de o ver de frente. de lhe tocar. de lhe sentir o cheiro. de trespassá-lo com a minha língua. de o fazer gente como eu fui.de o dar á luz. vezes há em que o meu amor se cala e mesmo acompanhada com o meu homem-poema, eu me sinto sozinha.vezes há em que eu precisava de lhe ouvir a voz da garganta e não a voz da mente. vezes há em que eu almejo partilhar os meus pequenos sucessos e apenas tenho um saco de plástico do lidl insuflado de vento. não te minto e confesso: vezes há em que duvido, em que te questiono. dá-me por vezes, a raiva e estaco o meu olhar na poltrona antiga porque sei que não vais aparecer e tento convencer-me disso mesmo, mas não há tempo suficiente.



2'26/foz/

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Dia 3 de Fátima

Fátima não resolve, revela.
O que parece bom, revela-se melhor ainda. O que já se adivinhava, revela-se pior. Fátima foi translúcida, de uma clarividência que cegou por instantes de tão óbvia. Deve ter sido esta a ofuscação dos milagres. E eu juro que acredito em milagres, porque os senti e continuo a sentir todos os dias. Os milagres dão-se através de indivíduos anónimos que, no último dia das suas forças, esquecem-se das suas próprias dores e pegam noutros peregrinos e ajudam-nos e transportam-nos até aos portões da ágora católica. Os milagres dão-se todos os dias, através de nobres indivíduos aturdidos de dores nos músculos mas que continuam a cantar e a puxar por outros anónimos para não desistirem das suas demandas. Os milagres dão-se em alturas de aperto de sede, mas onde restam forças para orar em 15 pequenos altares, à margem das ruas, em declives que convidam a desistir.
A última etapa (Pombal-Fátima) revelou-se a mais bucólica e por isso mesmo, a mais bonita de percorrer. Atravessando bosques Blair Witch Project, à luz de lanternas rarefeitas e conversas frescas e inusitadas onde ficou claro que o "mundo é mesmo um ovo", passou-se uma noite de gelo a rasgar a pele. Dormitei mais que uma vez, encostada ao capô de um automóvel estacionado. Cedo, deparámos com um altar-montra onde cada grupo de peregrinos deixava uma recordação pessoal.
O almoço, sentados em roda num coreto de aldeia, foi o momento alto de toda a minha jornada. Presenciei o verdadeiro milagre de Fátima porque vi a beleza simples da Arte incarnada na voz de alguns membros do grupo. Individualmente e, principalmente, por não terem consciência disso mesmo, eles tocaram ao de leve o dorso da Beleza Transcendente de Deus. E, se realmente há mesmo um Deus, eu apontaria aquele o momento em que ele deixou que os humanos O vissem. Porque Ele manifestou-se espontâneamente, sem que O procurassem, O provocassem ou Lhe dessem promessas a cumprir. Deus apenas foi. Ali, naquele lugarejo perdido no caminho para Fátima, em letras de fados e de canções populares, cantados quase à desgarrada. As lágrimas soltaram-se-me e caíam desamparadas na minha t-shirt, manchando-a. Só viu Deus quem estava de fora. Os intervenientes não tiveram noção disso e é pena. Porque procuram Deus desalmadamente no exterior de si e não perceberam que fazem parte de um todo, grande muito grande e belo. O meu Deus chama-se Arte, porque é aí que eu encontro Beleza, Harmonia, Elevação, Sublimação. É a Arte que me galvaniza e que me excita. Ninguém é mais religioso que eu por o antropónimo "Deus" ser diferente. Escusem-se a ostracizar-me por as palavras das minhas orações não serem as mesmas. Não me convencem. Não têm um canal de comunicação mais directo que o meu, lamento. Desengane-se quem se julga mais "apto". Contudo, entendo agora porque, ainda assim, se continua a ir a Fátima, ano após ano.

Entrar no santuário foi, antes de mais, um alívio. O grupo demonstrou essa alegria nos beijos e abraços que trocou entre si, nos "parabéns" e "sucessos" desejados. Homens e mulheres arrastavam-se, de joelhos, entre distâncias intermináveis. Espantou-me os avisos legíveis pelas paredes do templo principalmente de manutenção de ordem pública. Comprei velas castanhas e fininhas que coloquei na pira. O desejo que peço todos os dias e todos os dias me é concedido: saúde para mim, para a minha família. Amar e ser amada e o desejo de gerar a minha própria família. Não será atendido meu pedido agora que o disse em voz alta?
Conheci a Igreja-Mor que, pelo seu tamanho grandioso, mais parecia uma sala de espectáculos, muito melhor que a maior parte das salas que conheço. Amei o mural em talha dourada e o Cristo portentoso que pairava sobre o altar. Não me arrepiei.

Fátima prolongou-se pelos dias vindouros. Precisei de digerir Fátima, mas isso até foi o mais rápido de digerir. O resto não.

sábado, 14 de maio de 2011

Dia 2 de Fátima

O meu segundo dia de caminhada começou ás 2h30 da manhã de terça feira. O "jet lag" perturbava a minha rotina física mas, incrivelmente, achava toda aquela azáfama exótica e isso dava-me força. O peito de ambos os pés estava completamente aberto, como quando se joga ténis e os pulsos ficam abertos, a dor era imensa e tinha muita dificuldade em caminhar, depois de, na noite anterior, ter caminhado cerca de 14 horas. Coloquei os meus pés elásticos e isso sim, foi a grande salvação.
Reaprendi a amar o nascer do dia e lembrei-me de Orfeu que, com a sua música, tinha a capacidade de fazer nascer o sol. Os camiões passavam-nos a centímetros e comecei a esmorecer. "Jantar" sopa da pedra e bifanas as 8h30 da manhã e parar duas horas a tratar de pés ensanguentados e furar bolhas de água com agulha e linha de costura. O sol ardia no céu e fustigou-me a pele até ela, neste momento, escamar como a pele das cobras. Pensei nas minhas irmãs a precisarem de atenção, na minha família tão unida, nas minhas cadelas a não entenderem por que é que eu não estava com elas, nos meus amigos distantes mas a apoiarem-me, na minha casa quieta acolhendo a benedita e a constança. Pensei na minha paixão pela arte e no prazer que tenho em viver esta minha vida. Pensei no homem que, para mim, está ao lado do "sr. das Barbas": um de pé, o outro sentado de tão idoso e lembrei-me da conclusão do dia anterior: Fátima põe o mapa sobre a mesa, não dá respostas.

O sol torrou-me de tal forma que me senti no meu extremo. Nesse extremo, a mancar, separei-me do grupo e segui no meu ritmo a cantar sozinha, a abanar os braços de cansaço. Pombal era já ali, mas podia ser 20 km mais á frente que já estava imune a qualquer coisa mais...já não me podia doer mais nada, já não podia estar mais cansada, já não podia mais com o sono, e aí descobri que não tenho limites. Quando o meu corpo bateu na pior dor, ele não se foi abaixo. continuou, sozinho: a minha consciência calou-se e deixou-se comandar mecanicamente. Ninguém desistiu.
Em Pombal, retemperei as minhas energias física e psicologicamente porque fui injectada com a melhor adrenalina.

Neste segundo dia concluo que é preciso fazer Fátima para se perceber MAIS e MELHOR a vida fantástica que vivo. As pequenas epifanias com que me fui deparando na viagem e que são o motor da maior parte dos peregrinos para andarem mais uns quilómetros para a frente. Eu própria as senti: na voz da Carla a cortar o silvado numa oração cantada, na luz dos olhos de peregrinos quando se sentam e tÊm alguém que lhes massaja os pés, no nascer do dia ao som de um terço cantado. Não tÊm esta forma, claro está, mas eu já vivo estas emoções imensas vezes. E isto é assim porque eu estou em contacto com a Arte. Com a Beleza. Com o Amor. Com a paixão. Sem conhecer Fátima, eu já tinha optado, sem saber, por viver um "post-Fátima". Neste sentido, Fátima mostrou-me o que eu já sei. Quantas vezes eu pensei para comigo própria: eu devia estar era com as minhas irmãs! Eu AMO verdadeiramente estar com elas! É com elas, com a minha paixão pela Arte que eu vivo estas epifanias todos os dias da minha vida!

E é por isso que a conclusão de hoje é: Fátima foi o melhor tempo desperdiçado da minha vida.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Dia 1 de Fátima

Numa fase de experiências, decidi levar avante uma empresa há muito desejada. Por motivos profissionais, nunca até agora, tive oportunidade de deixar de trabalhar durante uma semana e dedicar-me a este projecto: ir a pé a Fátima. A associação de apoio aos sem-abrigo onde colaboro, vai todos os anos a Fátima a pé e este ano disse: “vai ser agora”.
Sou uma pessoa extremamente religiosa no sentido etimológico de “religação”: a minha espiritualidade não tem que ver com missas (apesar da minha vida ser pautada por rituais). Não tem que ver com rebanhos (apesar de acreditar na força do indivíduo, como membro integrante de um grupo e na sua respectiva coesão grupal). Não tem que ver com massas a recitarem de cor(ação) as mesmas ladainhas (apesar de acreditar piamente na força da palavra verbalizada e nas orações). Não tem que ver com músicas religiosas vs músicas pagãs (quando me curvo perante a força da Arte). A minha religião vem de dentro e religo-me aos indivíduos pela vontade, pela força que nos faz transcender e galvanizar e nos transforma em seres elevados. A minha religião faz-me acreditar realmente em “qualquer coisa” indizível que nos dá uma espécie de super-poderes, onde fazemos coisas que nem sabíamos ser capazes. A minha religião faz-me acreditar em magia.
É meia-noite e vinte de segunda-feira e escrevo duas horas antes de voltar a dar o primeiro passo na etapa de hoje: Coimbra – Pombal. Devia estar a descansar e a tentar dormir mais um pouco, já que as caminhadas são feitas de noite. Sinto os músculos das coxas comprimidos e a minha pulsação nos pés. Não tenho promessa feita que me empurre nesta jornada. Não há nos meus olhos uma senhora em cima da azinheira que me puxe para ela. A minha curiosidade trouxe-me até aqui. E é um motivo tão válido como outro qualquer porque, de facto, eu estou aqui. Caminho. Faço os mesmos esforços e privações. Por isso, se tenho promessa, se pretendo fazer um estudo sociológico, se sou maluquinha, com estas dores, o motivo pouco importa.
“ A dor é a fraqueza a sair do corpo.”
Ouvi esta frase pela boca de uma personal trainner de um novo programa televisivo. Lembrei-me dela quando, ainda nos primeiros 10 klm a caminhar comecei a sentir dor. Primeiro, no joelho direito. Sorri, mudei de pensamentos e passou. Pouco mais tarde, a dor navegou até ao pescoço. Sorri, mudei de pensamento e passou. Mais tarde, as coxas. Os pés e por fim, nada. Cansaço. Senti o meu corpo a resistir, a espreguiçar-se, a resmungar comigo. Pedi-lhe literalmente “desculpa”. Pedi-lhe ajuda. Falei mesmo com os meus pés e disse-lhes o quanto estavam a ser “bons meninos”: não tenho uma única bolha. Agradeci a beleza dos verdes das árvores e as flores roxas, escancaradas de tão abertas, que surgiam nas beiras das ic’s. Vou muitas vezes a cantar sozinha, apesar de grande parte da beleza deste grupo, ser a alegria que se instalou desde que saímos.
A reacção física do meu corpo à Religação é o arrepio. A primeira vez que me arrepiei foi quando, do nada, uma voz feminina se elevou do grupo como um grito de dor, numa melodia tosca e uma seta ao coração. O grupo seguiu-lhe a entoação e aí senti-me ao lado de qualquer coisa: se é Deus, Jesus, se tem barbas e cajado ou se é uma mulher loira de túnica, pouco importa. Não é essa a resposta que procuro.
Caminhámos 8 horas. Quase em Coimbra, entrámos numa capela onde se orava a cantar, já o sol ardia na pele. Há coincidências (que não são) difíceis de acreditar: o padre que ministrava era o padre da minha freguesia de infância, a capela pertencia a uma família conhecida minha da mesma freguesia, encontrei alunas minhas e todos juntos “banhámo-nos” naquela nave de luz, flores e música. Aqui se deu o meu segundo arrepio. O meu grupo deixou toda a gente sair da capela e aproximou-se do altar. De mãos dadas elevadas aos céus, sem combinar, deu-se início a um repertório que nem sabia existir de recitais cristãos. Vi os meus colegas de caminhada chorarem descontroladamente e senti, confesso, senti quase uma inveja por, naquele momento, eles estarem a ver algo que eu não estava a conseguir ver. Deixei de lhes prestar atenção e concentrei-me unicamente na energia daquela capela e assustei-me, porque me arrepiei. Abri os olhos de repente, ligeiramente incomodada. As pessoas querem sempre compreender, perceber, racionalizar. Eu tenho feito um esforço para deixar de pensar com a cabeça e pensar com o coração, mas ainda sinto alguma resistência do meu corpo. E o que aconteceu ali foi isso mesmo: o corpo a sentir na pele a energia e o meu intelecto a mandar abrir os olhos e a parar com aquela “inexplicabilidade”. No final, tentei falar com a Carla (uma mulher que gosto como se fosse a minha irmã mais velha) mas ela estava na sua própria peregrinação e não teve tempo para mim. Limitou-se a olhar-me, sorrir e dizer: “Chora-se porque se está comovido.” E pronto, eu comi e engoli. Só senti isto na Arte, ao ouvir certas peças musicais, ao ler certos poemas, com a beleza de certas pessoas, com a bondade e certos gestos que me tocaram.
N a subida do Monte de Sta. Clara foi a única altura que “me caiu a moeda” e lembro-me de pensar: “Realmente, uma pessoa para se sujeitar a este esforço físico tem mesmo de querer muito, tem de ter uma vontade extra-sensorial”. Já consigo perceber o papel do sacrifício e do esforço mas não o consigo assimilar para mim. A vida parece-me demasiado ardilosa já, para a pormos à prova com novos sacrifícios e angústias. Se ela falasse, não sei se seria isso que ela nos ía pedir. Não me parece que seja a única via.
Sentada nesta cama, de banho tomado, hoje, segunda-feira, primeiro dia de caminhada, concluo: a peregrinação não traz respostas. Mostra caminhos. Abre mapas sobre a mesa. Põe hipóteses. Vira a moeda para lhe vermos o outro lado.

00’57 / Coimbra

quinta-feira, 7 de abril de 2011



o dia do divórcio. não há uma forma leve de passar por aquilo.
há quem pense que não é um papel que dita o verdadeiro divórcio, como há quem diga que um casamento não se faz pela conservatória. a verdade é que, perguntando a qualquer pessoa que já passou por isto, a verdade é que pesa. é um marco, é uma meta de chegada, mas apenas é uma meta de chegada vista na perspectiva do próprio dia e nos dias que o antecedem: de quem ainda não trocou a alma de sítio. é uma meta de partida, no dia a seguir e daí para a frente.

ontem um amigo meu divorciou-se. e o que eu mais desejava era poder pegar nele ao colo para não ter de passar pelas brasas descalço. a verdade é que é necessário ele caminhar sobre as brasas. pode ir de mão dada com alguém, mas ao lado, não a sofrer com ele. é uma angústia que só se pode vivÊ-la, angustiando. e essa angústia modifica, para sempre, a perspectiva do mundo e da vida. a pessoa que caminha sobre estas brasas não é a mesma pessoa que saiu na meta de partida. há toda uma mudança irreversível que nem adianta contrariar, só resta aceitar e rezar para que seja da melhor forma possível. passa a haver um termo de comparação, um antes e um depois e é importante que se saiba que o "depois" é tão bem melhor...
nunca fumei mas se calhar comparo com o "deixar de fumar". imagino que haja prazer em algumas cigarradas, mas voltar a sentir o verdadeiro sabor dos alimentos, voltar a ter qualidade de vida, ainda que o caminho pareça ser de pedras afiadas

"Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir um castelo."


não é uma utopia nem um oásis, há mesmo felicidade a seguir.



16'00/no meio do oceano

segunda-feira, 4 de abril de 2011

mensagem ao passageiro ido

Agora que não estás aqui, e como tua viúva, quero que saibas que o teu cheiro não está apenas nos livros, como diz a canção. Está na forma como as cadelas continuam a olhar para a porta, depois de eu própria já ter entrado em casa, e elas à espera que surjas a seguir para te fazerem a festa que tu tão bem conheces e te encherem o casaco de pêlos.
Quero que saibas desta forma de falar que não era minha, e onde utilizo vocábulos que desconhecia, veio alterar para sempre a minha comunicação e como a expresso aos outros. Quero que saibas que estes cinzeiros ficaram por tua causa porque eu nem fumo. Quero que saibas que não vou deitar a venda fora porque tu não conseguias dormir com luz no quarto e não tinha persianas para a filtrar. Quero que saibas que aprendi, para sempre, de que lado é África e de que lado é a América, a diferença entre a direita e a esquerda. Quero que saibas que nunca o meu gráfico emocional subiu a níveis tão altos de êxtase, como também nunca tinha entrado em tais níveis de obscurantismo.
Agora que vive comigo a tua ausência, como mãe e viúva antecipada, quero que saibas que levaste contigo o nosso sangue fresco onde circula, vivo e activo, o amor que, juntos, transformamos em ser humano.


21'44/arroz de frango da mamã

quinta-feira, 10 de março de 2011

Orfeu e Eurydice

(Eurídice atira-lhe um beijo e sai).

Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços! Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
E' mais porque te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada...
E sabes de uma coisa? cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto, - que é que eu sei! essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem - nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! e me dizes essas coisas
Que me dão essa fôrça, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...
Coisa incompreensível! A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos. Tu
És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! criatura! quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres - que êle, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que eu estarei contigo!



Excerto da obra de Vinicius "Orfeu da Conceição".

Conheço de cor (de coração) esta obra musicada na voz de Bethania, há anos que passaram velozes. Revi estas palavras hoje, numa aula de Literatura Brasileira, onde me mantive arrepiada durante todo o monólogo declamado.
A obra de Vinicius é baseada num mito clássico "Orfeu e Eurydice". e o que me fez cativa desde sempre deste pedaço da mitologia é o amor absoluto de Orfeu (filho de Clio e Apolo - os nomes dos deuses podem variar) que tem o dom extraordinário da música que retira de uma lira. Apesar de ser assediado por todas as mulheres da Trácia, Orfeu apaixona-se por Eurydice que, certo dia, fugindo das investidas perversas de Aristeu, é mordida na floresta por uma serpente que a mata e a atira para o reino do Hades. Orfeu, desesperado pela morte da amada, decide resgatá-la e, com a sua lira, acalma Cereberus - o cão de três cabeças que guarda a entrada do reino dos mortos. sob a condição de nunca se voltar para trás para ver Eurydice, Orfeu consegue resgatá-la. porém, mesmo quase a chegar à Terra, Orfeu volta-se para trás e nesse momento, perde a sua amada para sempre. Chorando de dor, Orfeu rejeita todas as mulheres apartir desse momento. E é pelas mãos dessas mulheres da Trácia que ele sucumbe à vida.

Vinicius traz este mito para uma povo favelado, encostado num morro brasileiro, com personagens negras e de condições inferiores. Vinicius mostra como a música é uma linguagem universal e que tal como o Amor é sentido por todos , até por pobres e desfavorecidos e sem formação.

Arrisco-me a pensar que a ideia da peça tomou forma apartir deste monólogo.

e há tanta coisa que fica por te dizer. é para ti.

1'19/cheia

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

balada do riso condenado

Dizem que o olfacto é o sentido que mais directamente chega ao cérebro. Há uns dias atrás experienciei esta frase, num final de tarde no Solar do Vinho do Porto, paredes meias com os jardins do Palácio de Cristal. Meter o nariz no cristal do cálice, fechar os olhos e aspirar de um só suspiro: a madeira velha e encerada do tecto da sala do director da Academia de Vilar do Paraíso, quando lá ensaiava as audições de Natal, com os pianistas; a madeira dos vetustos pianos tocados por milhares de dedos incipientes; o ranger do corrimão flutuante das escadas senhoriais; o abrir da caixa de violino e espirrar com o pó da resina; os alunos que tinham aulas pela escola e que tudo se ouvia em todo o lado; a música a entranhar-se nos miúdos e a apoderar-se deles como um polvo invisível.

Hoje voltou a ser. através da audição.

A minha professora dizia que o melhor quando assistía a um bailado era ouvir o som dos bater dos pés no linólio, a respiração adulterada, o suor que escorre. O filme de hoje fez-me reviver os meus anos de bailarina e tudo o que contêm. A esta distância, isolo a capacidade de auto-sacrifício a característica que o ballet clássico mais fundo cravou na tábua do meu ser.
Encontrei hoje uma amiga minha enlutada como eu e proferimos em coro: "não nos podemos dar ao luxo de ter uma depressão!" e no meio do lamaçal, desatámos a rir às gargalhadas. e daquilo que seria o óbvio, mudámos a nossa perspectiva de olhar o mundo e tudo se transformou na beleza.

Apetece-me rever os reflexos do oiro que está subjacente a ti e que deixas escapar, distraído, em laivos.

sinto uma urgência do cheiro da tua barba.


02'08/sei

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

"There is no force on earth more powerful than the will to live"

Há já muito tempo que não era surpreendida no cinema. Nunca fui boa a escolher filmes nem tenho o instinto para acertar nos filmes que realmente gosto. Dir-se-ía que tenho jeito para escolher o "comercialão" e fico sempre surpreendida por me surpreender quando: "não gostei".

Este filme é para ser visto. Ponto final. Mais cedo ou mais tarde, vocês terão de o ver por isso passo a verbalizar.

O Fantasporto não podia ter estreado da melhor forma. Não conheço particularmente o trabalho do actor James Franco mas a história verídica que protagoniza há já muitos anos que povoa o inconsciente humano colectivo.
Quem não se lembra de ver em todos os telejornais o fatídico caso do alpinista que, para sobreviver, teve de decepar o próprio braço?

Danny Boyle oferece-nos um Aaron cheio de força interior, independente, solitário e feliz que, quando é deparado com a sua própria finitude, testa a sua capacidade de aguentar o sofrimento (físico e psicológico) e é salvo por aquilo que só algumas pessoas conseguem: fazer o que está certo.

Costumo dizer que "é nas pequenas acções que se vê a grandeza da pessoa". Aaron (depois de dias a tentar combater o inevitável) conseguiu isolar na sua cabeça o que o mantinha preso entre as rochas e próximo da morte. reduziu-o. relativizou-o e arrancou o mal pela raíz, com uma frieza chocante. e tudo se galvanizou. quando percebeu que não conseguia voltar ao "antes", quando percebeu que nada podia ser igual apartir daquela força da natureza, ele optou pela vida, ainda que antes julgasse não conseguir viver sem uma parte importante do seu corpo. tudo se relativizou e nada foi como dantes. conheceu os seus extremos e deciciu dar o passo em frente ainda que lhe fosse desconhecido o que viria a seguir. escolheu viver e transcendeu-se. porque sabia que o outro caminho o estava a matar paulatinamente.
São estes momentos de viragem que conduzem uma pessoa para a vida ou em direcção à morte. Para viver, fez o que tinha de fazer. ainda que para isso tivesse de passar por uma dor incalculável. sabe-se, no entanto, que é humanamente impossível lembrar-se "do que dói a dor". não é possível reviver a dor. lembramo-nos de como nos comportámos perante a dor, do quanto nos retorcemos com os espasmos, de como chorámos de raiva mas não nos lembrámos da dor em si. ainda bem.

ou ainda mal porque nos poupava o sofrimento de voltar a cair nos mesmos erros.


3'39/força de avó com perna decepada "por favor, nem que morras!"

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

a vida num só dia

A morte apresenta-se-nos das mais variadas formas. E se calhar é por isso que ela me anda a rondar tanto e tão persistentemente: porque tem o rosto de um Brad Pitt, porque tem a energia de um Henrique ou de um bisturi eléctrico e tem a beleza de um cesto de flores depositado no lixo.

quantas vezes será possível desperdiçar o amor?

a vida é um turbilhão onde alguns caminhos se tocam, outros seguem paralelos, outros se cruzam e outros ainda que se sobrepõem durante uma grande temporada. é como se fosse uma grande peregrinação a um templo qualquer. uns seguem a correr, outros de joelhos, outros a martirizar-se, outros a rir, outros a desfrutar, outros desistem mas o caminho tem sempre um fim.

desejamos sempre percorrer esse caminho com a melhor disposição. Tentamos estar atentos a quem se nos atravessa para perceber se é uma mais-valia ao nosso caminho ou não. há algumas coisas que deveriam durar para sempre e pessoas que nunca deveriam poder morrer. e é nesses entretantos de vida que a vida se passa de facto. não é quando se pára para pensar, é quando se é imune aos obstáculos porque se está perdido nuns olhos fundos de azul. é aí que a vida se passa. a vida acontece numa cama de cortinas que tremem com a tempestade lá fora, enquanto se beija e se curam feridas que não são nossas. a maior cicatriz é esta. a assinatura do documento é feita quando se entrega a vida numa caixinha de prenda e quem recebe fica-se pelo exterior a admirar o papel de embrulho com a covardia nos olhos, sem a força anímica de quem quer saber o que está dentro mas tem medo do que possa encontrar e não saber o que fazer com a felicidade.

sentir a vida beijar-nos no rosto, dentro de um veleiro, ao percorrer o mundo com a pessoa que apenas num olhar nos tirou a respiração. vale a pena entregar a vida por isto.

haverá razão maior que morrer por amor
?



13'08/funeral

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O outro lado do branco


O que seria de nós, se entrasses agora por mim adentro nessa incerteza que te traz cativo? seríamos nós mais felizes do que o que somos agora? o que seria de nós se, apenas agora, respondessemos por inteiro à equação química da nossa pele? qual a reacção cósmica da teoria caótica das nossas línguas? que seria de nós se não me dissesses tantas mentiras especiais que me dizes por razões específicas para melhorar a nossa vida? Proust escreve que a felicidade é algo de que a febre está ausente. Ardo.
Vazará um dia este ardor que me consome quando pairas os meus pensamentos? A coisa mais importante é a resposta à vida. e eu possuo-a todas as vezes que a encontro na ponta dos meus dedos. Não sei o que esperar de ti, mas é algo parecido com um milagre. Exiges-me tudo - até o impossível, porque eu te encorajo. Eu sou realmente forte. Sinto necessidade de te dizer que te amo porque não acredito nisso. Todos os dias penso e racionalizo novas formas de te amar. Existem beijos novos nos teus cabelos.
Por que se encolhem todos os homens perante o amor mais difícil? Anaís disse-o: "não são as mulheres fortes que fazem os homens fracos, mas os homens fracos que fazem as mulheres superfortes".

Deixa-me ler-te esta passagem de "Henry and June":

"...tu amas as tuas prostitutazinhas porque és superior a elas. Recusaste realmente enfrentar uma mulher que esteja ao teu nível. Ficaste surpreendido de ver quanto eu podia amar sem julgar, adorando-te como nunca nenhuma prostituta alguma vez te adorou. Bom então, não estás mais feliz por seres adorado por mim, e isso não te faz infinitamente superior?"

00'10/antes de ir trabalhar/capricho 24 paganini





Não tenho a arte de juntar palavras que se transformam num reluzente, espesso e doce mel como tu o fazes.
Essa beleza entre nós apenas a ti pertence.
Transformar água em gelo em que esculpes as mais belas estátuas. Algumas, não duram mais que umas longas e boas horas.
Tal como a nossa… em que destino cruzou, descruzou e nem tempo tive de lamber e saborear o suor de paixão que te escorria entre os seios.
Desconheço as regras ou normas de escrita… no entanto, “choro” emocionado a cada frase que leio das tuas infindáveis dissertações internas.
Não sei o que é o sujeito poético, não sei quais são os pronomes,advérbios, nem os tempos dos verbos correctamente conjugar... tão pouco adjectivo com a potência com que tu o fazes.
Não tenho a loucura dele, não bebo do mesmo veneno… não percebo as suas metáforas.
Mas uma coisa ninguém me tira… sinto… sinto… sinto!
Por isso sou humano… por isso falho… falho e continuarei a falhar. cada tentativa falhada desventra-me.
Odeio falhar.
Ajuda-me a não voltar a errar.

Abrir parêntesis tu sim mereces fechar parêntesis ponto de suspiro

Tarde de chuva de domingo ao som da lareira e michael bublé/ não respondes/ 12 min/
ressaca brutal"

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Mr. e Mrs. Smith

"fica comigo esta noite" pediu-lhe Santiago enquanto ela lhe escapava de entre os dedos
"vou-me embora agora, não há mais nada para te dizer"
"eu sei que está tudo dito, já o tínhamos dito sem falar, mas fica só mais esta noite"
"ouvi dizer que o teu amor por mim era filho de um deus menor, manco e sem olhos, nunca me importei porque era sinal que era forte. sempre pensei no nosso amor forte, pelas circunstâncias a que sempre esteve exposto. afinal estava drogado, dopado, medicado. vou embora agora. enganei-me na pessoa, desculpa, tudo o que sentiste , não era para ti"
"espera, não vás. não te enganaste. sou eu que estou aqui. o teu outro "eu", a tua outra parte, não mudei neste entretanto, continuo aqui e gosto mais de ti agora do que há bocadinho e menos do que de caminho."
" daqui não se vêem as estrelas. vou fugir daqui. como diz a canção, vem, vamos embora/esperar não é saber/quem sabe faz a Hora/ não espera acontecer"

vomitou duas vezes seguidas. vomitou a poeira, a tristeza, o jantar e o vinho. vomitou a alma que não era sua e a música que estava incrustada na pele e nos cabelos. como um demónio que tomara conta do seu corpo e que saiu pela sua boca, naquele instante, como um amor maldito e o único que vale a pena.

o amigo recebeu-o como pôde, com um abraço enjeitado e constrangido. emprestou o seu ombro e não o pediu de volta porque estas coisas não se pedem aos irmãos. deambularam os dois pelas ruas de calçada sem saberem muito bem por onde íam. para se distraírem falaram das viagens e das gentes e o tempo não se fez sentir. só mais tarde, sozinho no quarto de banho, olhou-se ao espelho e nada viu. não tinha reflexo do seu rosto. o espelho não lhe devolveu a imagem do seu rosto porque "a música nunca vem de onde se espera" e nada há de mais honesto que os olhos. não dormiu nessa noite e na manhã seguinte, foi ter com ela e pediu-lhe de volta a alma e a carne.
como se, a meio de uma dança, Santiago tivesse ficado sem par, a dançar sozinho.


00h56/7 fev/a ver fantasmas e a comer a outra metade da laranja

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

a conversa ou a crónica do fim anunciado

sentaram-se à mesa para uma conversa. sabiam exactamente do que conversar. sabiam o corpus, o lettering, a banda sonora, o argumento, os actores, o tempo diacrónico e sincrónico, os feedbacks, os timmings, os sujeitos poéticos, os recursos estilísticos, os instrumentos e o materiais utilizados, os cenários e sobretudo, o fim. só não sabiam como começar.

pediu-se da ementa. falou-se do dia que passara, do trabalho, dos contactos, das pessoas que se cruzaram com eles, das conversas com outros e com eles próprios.

bebeu-se água fria. fria como o elefante em cima da mesa que olhava para os dois, sentado como uma pessoa e com a tromba descaída no meio das suas pernas grossas, cinzentas e peludas.

as pessoas no restaurante, também elas esperaram suspensas que a conversa começasse. todos eram actores num jantar-fantasma que já havia sido feito vezes sem conta, na cabeça de cada um deles. o fim sempre parecera inevitável como um capricho de deus, apesar de nunca ter havido motivos para tal. e talvez por isso, aquela conversa-fantasma apenas tenha existido num tempo paralelo, numa outra galáxia que todos sabem existir mas que nunca se viu. há coisas que existem sem se ver. os começos e aquele fim. não era uma despedida. não era uma morte no sentido que se morre apartir do momento em que se nasce. era um fim teatralizado, já vivido muito tempo antes, sem criatividade e sem originalidade. e apesar de terem marcado, como pioneses num mapa mundi, cada momento forte que vivenciaram: falaram dos presentes, das sacas de papel laranja com poemas de amor que furaram o tempo até àqueles dias (porque apartir daquele dia, novos poemas de amor foram escritos), ou com gravações de voz proferidas inusitadamente, ou bandas desenhadas ou músicas eternas que de alguma forma, retractaram para sempre quadros da vida deles enquanto casal. pareciam antever a urgência em não permitir que cada momento desaparecesse mergulhado na memória do inconsciente individual. que cada momento ressurgisse de entre das páginas de uma agenda ou numa fotografia de uma aldeia em pedra, perdida no país que visitaram juntos.

ainda a conversa final não tinha começado e sentiam-se já aturdidos de saudades e arrependidos pelas palavras que ainda não tinham dito, que ainda não se tinham tornado carne mas que laceravam já no peito de cada um.

19h51 / 2 fev / fim e início