domingo, 24 de outubro de 2010

a arte de bem chorar

entrou na igreja ao som desta música.

chorou naquele dia agarrada à pedra das paredes do mausoléu, antes de dar o primeiro passo. entrou lavada em lágrimas e transportou para o pequeno bonsai de penas coladas a angústia do primeiro passo. chorou durante toda a casta diva. lembrou-se da primeira vez que a ouviu: volvo azul, um sábado de tarde, com o papá. ficou-lhe o gosto por ouvir música no carro, no volume máximo.

quis que soubesse, que também ele já não existia mas a Callas, sim. Ele passou mas ela não. A Casta Diva, não! Ela já ninguém lhe tira.


Desculpa todos os dias te pedir desculpa. "A tiger does not proclaim his tigritude" Wole Soyinka
Sei que nos vamos encontrar um dia num sanatório, como lhes fazia Miguel Esteves Cardoso, e conversaremos, drogadamente, sobre o dia em que te foste embora. e vai ser nesse dia que eu vou pegar na minha cadeira de rodas e vou dar meia volta e deixar-te especado com um fio de baba a cair-te na bata, enquanto eu me afasto para nunca mais me veres.


2'13 / 23 para 24 out 010 /

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

ronda dos sem abrigo 20 out - voltar

Ontem foi dia de ronda.
em todas as quartas feiras que não pude comparecer, todas elas mexiam comigo, às vezes sem me lembrar que era por causa das rondas.era dia de tarefas. boas.

voltar.
entrar na confeitaria S. Remo e ser recebida num grupo sorridente e bem disposto. Fazer os sacos na av. da Boavista e receber, com a alma cheia, as palavras do Artur de boas-vindas aos novos voluntários.

Maria João, Fatima, Ricardo, Fernandes, Carla, Artur, Lia, Joana, Adelino

Começou na Batalha onde uma multidão de caras novas nos recebeu, famintos e cheios de frio. Já não me lembrava como as noites do Porto podem ser tão frias e vazias. Distribuiu-se roupa. A de homem acabou nessa mesma paragem. Precisamos de mais e mais agasalhos. Não vi crianças o que me deixou mais tranquila.

A alegria e boa disposição levaram-nos às lágrimas de tanto rir no carro da Carla. Parámos na Batalha onde estavam apenas duas pessoas. uma delas decidiu presentear-nos com um fado seu meio improvisado, meio ensaiado. foi dificil segurar-me, confesso, mas o que começou por ser uma paródia, era no final, um clamor desesperado que de piada não tinha nada. As rondas são mesmo assim: uma mistura de emoções onde, num momento, não conseguimos parar de rir, no momento a seguir caiem-nos lágrimas pela cara abaixo e encolhemo-nos perante a nossa impotência e pequenez.
Seguimos para o Hospital Sto. António.

Mais uma multidão. Encontramo-nos com os Samaritanos que têm um papel tão importante na rotina destes sem-abrigo. Montei o estaminé no capô do carro e "vendi" mais um punhado de roupa. Novos rostos. Nunca menos. Sempre mais e diferentes. Um alentejano desempregado, com formação em Restauro, contava anedotas de alentejanos.
Terminámos a ronda de ontem num Aleixo despovoado de vidasaudável. Restos de pessoas com buracos no sítio de olhos arrastavam-se pelas paredes. E finalmente fizemos aquilo que me movia, a todas as quartas feiras, eu deixar a minha vida e dá-la a estas pessoas: descemos à Torre 1. O cheiro é indescritível, as imagens murros no estômago. Respira-se morte e não há sacos suficientes e capazes que atenuem nem por 2 segundos a morbidez que ali está instalada.

Não sei explicar como tamanha miséria me atrai tanto mas só no meio deles eu me sinto bem.


21'56 / 21out