quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Quando um cresce


O buda redondo que está à nossa frente murmura-me o nome de cada homem  que ainda terei na minha cama. Parece-me que não viverei tempo suficiente para saber o nome de todos mas o deus que me guia é o pequeno, o outro, o das coisas que cabem na palma da mão e não tenho a philos  suficiente para o contradizer.
Saímos do monumento com a sensação que lá deixámos alguma coisa. O tempo cá fora é suado e esforçado. É necessário empurrá-lo para conseguirmos passar. Custa a descer os pulmões.
Não nos olhámos nos olhos. Evitámo-nos. Sabemos que tudo vai acabar se houver algum canal que o propicie. Se não cruzarmos os olhos, não temos de falar (ainda que estivesses a meu lado).Tanto que dizer que nem é preciso dizer nada. A distância que nos aproxima é a mesma que vem por via das dúvidas. Vá-se lá entender.
Aproximo-me da velha fonte e mergulho o meu rosto, confessionário de saberes e paixões que tu não deixas, até o fundo me aparecer roxo e nublado  como o pequeno buda.



5'44 / Miranda do Corvo

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

The Square - de dentro para fora



Fui ver este filme sem qualquer tipo de expectativa. Uma ideia vaga de alguém a deambular num restaurante em tronco nu. Nada mais.
 "The Square" é um filme escrito e dirigido por Ruben Ostlund e ganhou a Palme de Ouro este ano. Isto eu não sabia quando fui ver mas entendo agora. Uma luta constante, durante todo o filme, entre o riso sufocado e o grotesco.  Ostlund põe o dedo na ferida no que toca à hipocrisia e ao cinismo. Valores universais como o sentido de comunidade ou a solidariedade genuina, sem contrapagamentos são cinicamente revelados. Mais do que uma vez senti a minha alma a virar do avesso devagarinho, numa só cena, percorrendo em escassos segundos que me transportaram de um lado da alma, ao outro oposto. Comecei por sentir uma coisa e passado pouquíssimo tempo, já sentia o contrário. A cena da performance no jantar de gala ficará para sempre incrustada em mim. Aquilo que começa por ser uma performance artística de um actor com comportamento simiesco, desenrola-se para uma experiência artística que traz à tona o reflexo verdadeiro dos intervenientes, esbatendo os limites entre intervenientes, obra de arte e vida real. O nó no estômago e a suspensão respiratória. O cinismo posto a descoberto num protagonista antagónico. O outro lado da coisa.
A arte questionada. Poderão montes de areia espalhados numa sala serem tidos como arte? E um amontoado de cadeiras? Onde começa e onde acaba?
A polémica de uma criança sueca, branca, loira, olho azul, dentro de um suposto quadrado de segurança, no porto de abrigo, e como a explosão desta criança vai criar polémica. E se fosse negra? E se fosse muçulmana? Haveria polémica sequer? Aqui estão os confrontos.
"Christian" surge como um anti-herói porque, na tentativa de fazer o correcto, o outro lado...ah, o outro lado. A personagem da criança a quem acusa de ser ladrão e que angustiadamente perdemos o rasto, antevendo obviamente o pior.
E claro...Bobby McFerrin! Saudades de revisitar este monstro da música na sua interpretação do Avé Maria de Gounod.


Sinto que o filme continua a exercer em mim, ainda ao dia de hoje. Ainda lá estou, ainda não acabou o filme.

https://www.youtube.com/watch?v=zKDPrpJEGBY

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Denovação


Re tornar. Re viver. Re mexer. Re fazer. Re modificar. Re lembrar. Re virar.

e sair algo parecido?
- Não acredito nisto.

Sigo nos contornos da linha de cada R e embora a cabeça do R seja por definição circular e infinita, a certo momento, essa cabeça redonda desagua em duas pernas que a sustentam. Pernas que estão ligadas ao chão como duas raízes de carvalho que entram pelo chão adentro e não se permitem mover. Há um novo caminho, um novo pathos. Não se pode re coisa nenhuma. Não é possível voltar onde se parou e continuar o percurso como se não houvesse acontecido nada. As mãos que fizeram,  já não são estas que fazem. O tempo é axiomático e nessa certeza está deitada a inevitabilidade da mudança. Não encarar esta certeza é adiar a angústia da novidade. É não aceitar que já não se conhece a pessoa. Que mudou. Que já não é a mesma. Que o tempo a beijou (como beijou também) e que por isso, a pele está agora beijada. Não se pode desbeijar.

Suspeito de quem re. De quem tenta re. Que mude a etimologia! Caso volte, então que vá com a certeza que a única coisa em comum é ter o mesmo contexto coisal. Que as personagens até poderão ser as mesmas. Mas a peça de teatro com certeza, já não.

Então que não se re!

Proponho a abolição de todas as palavras começadas por re. Só porque isso não existe. Não é possível re. Não está de acordo com a verdade.

Sugiro o prefixo denovar. Não pretende voltar ao ponto onde se parou. Não pretende mexer no que está ido. sabe-se que está passado. Agora, no presente, pegar nos mesmos ingredientes e fazer um bolo novo.
Saber que já se tentou antes e que não resultou. Vamos denovar-nos?

Há lá algo mais verdadeiro?

17'53 / casa / a ouvir isto: https://www.youtube.com/watch?v=eXssvtOFTLM