quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Lamber as Feridas

Finge que não me conheces
e não me voltes a procurar
peço te
de outra forma
não consigo.

todos os textos que te escrevi
se é que ainda tens algum...
faz um esforço e por favor
lança-os ao fogo


deixa-me lamber as feridas
calada quieta no meu canto
não me chames
não me lembres do teu nome
porque tu ainda existes
em todo o lado para onde olho.

porque tudo ainda me lembra a ti
deixa-me sozinha
lamber as feridas.

o relógio que te dei
espero que tenha parado
para sempre na meia noite
onde lançaste o meu coração.


mas até um relógio parado
acerta duas vezes
e com a sorte que eu tenho
sem fogo onde me abandonar
nem fogueira onde me lançar
hás-de-me aparecer um dia
e este fogo que me consome agora
me fará gritar contigo.


https://www.youtube.com/watch?v=jZWRp4UqyRo&feature=related


17h40/a subir a escada

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Luto

Estou de luto.

Não pela morte
de alguém que partiu
mas de luto de mim própria

De alguma forma,
a pessoa que eu era ontem
por esta hora,
já não é esta que escreve.


"Tinha diante de mim o rei das trevas. O quão fora belo anjo de luz, hoje era feio. Espantei-me ao ver que tinha três caras em uma só cabeça. A cara da frente era vermelha,a da direita, amarelenta, e a da esquerda, negra como a fulígem"

Descrição do Inferno in Alighieri, Dante, A Divina Comédia




VIGÍLIA

Como o companheiro é morto,
todos juntos morreremos
um pouco.

O valor de nossas lágrimas
sobre quem perdeu a vida
não é nada.

Amá-lo, nesta tristeza,
é suspiro numa selva
imensa.

Por fidelidade recta
ao companheiro perdido,
que nos resta?

Deixar-nos morrer um pouco
por aquele que hoje vemos
todo morto.


Cecília Meireles


14h26/scriptorium

sexta-feira, 11 de maio de 2012

A Bernardo

"O sol perguntou à lua" Não chega ouvir-te. Precisamos de te ver. Ver as narinas de touro e o olhar fulminante, nunca estás onde pareces estar. A quem és tu fiel? De onde te vem essa irresponsabilidade criativa onde três notas ganham o tamanho de uma sinfonia? Como se entra no túnel onde pareces entrar sempre que te concentras? E por que não conseguimos nós entrar? Já alguma vez encontraste, alguma vez e diz-me que sim por favor, esse êxtase vazio e sublime? Morreste, Bernardo! Valeu a pena? Há pianos onde estás, como disse o Abrunhosa? Como caíste, Bernardo? Esticaste-te? Tropeçaste? Espreitaste? Conseguiste ao menos tirar a fotografia? Podemos vê-la? A que sabe uma fotografia com cheiro a morte? O que deixas é maior que tu, mas só porque não te conhecemos. Somos o rei Minos numa Creta labiríntica: o medo que temos do Minotauro é igual ao medo que temos de aceitar que o sol perguntou à lua: logo vais aparecer? 20h28/a atravessar as cinco fases

quarta-feira, 25 de abril de 2012

aos toiros de todas as gerações

Neste dia vermelho / de pétalas arrancadas / onde os toiros / de cornos afiados / cospem ansiosos / e coçam-se. / Ai de quem abrir / agora / a vetusta cancela. / Seguram as velhas tábuas / o pavor primitivo / do primeiro grito / (e era o que bastava!) / Mortal-izam os toureiros / com olhos incandescentes / mas por trás das madeiras, / ainda. / Pressentem o cheiro do instável / da subida de degrau, / da escalada da mudança, / do abysmo branco. / Acenam-lhes os toureiros, / empertigados de rabos apertados, / com a verdadinha de hoje / (sentados sobre um prego) / "basta que chegue para mim e para os meus!" / cante-se sempre / a morte do primeiro toiro: / não faz, a mesma espada, cair dois toiros ao mesmo tempo 25/26 avr 2012/ 3.22