quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

beijo-bicho

procurou-a por entre os grandes contentores de chapa bruta. aflitíssima por não a encontrar. pediu ajuda aos segurança do cais, mas nenhum auxílio foi frutífero. chorou o seu nome em uivos de dor mas, empurrados no ar pelo vento cinzento, perderam-se para sempre.

quando por fim chegou a casa, eis o que o bilhete preso pelo íman do frigorifico lhe reservava:

"corria por entre pessoas e animais e só parava quando sentia no ar símiles do teu cheiro. vivia com os olhos no telemóvel esperando uma mensagem tua, um telefonema, qualquer coisa. tinhas-me cativo pelo teu cabelo, pelos teus pés e pelos teus dedos que adorava chupar lentamente e de olhos fechados. os teus beijos...ah, os teus beijos... essa forma que tu tinhas de me despedaçar o coração assim, em três tempos, sem mais nem porquê. beijo-bicho. animal selvagem, cheio de veneno que me entorpecia os membros e me deixava literalmente sem força anímica, enquanto tu te ias aproveitando da minha desgraça e eu desmaiava á tua frente. mais do que a ti, amava os teus beijos e o que eles me faziam. é possível viver de amar os teus beijos. eu não me importava com o que as pessoas diziam de mim: chamavam-me idiota e banana por seres a minha número um, a minha predilecta de entre todas e por causa do teu desprezo para com o meu fascínio por ti. a forma cruel com que tu me magoavas desnecessariamente e o despeito com que tratavas todas as minhas investidas. mas eu nunca me importei: eram os teu beijos o que eu queria. esse embrião de bicho raro com que fecundaste o dorso da minha língua magoada e que precisava da tua saliva para se desenvolver.

trata bem da Vitória. faz um esforço para te lembrares de lhe deitar água todos os dias e leva sempre a trela contigo.

para sempre, teu
Salvador "


20h28/30 dec/num sítio que não é o meu

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

por causa disto

"Existe ainda o preconceito (...) de que a arte deve dar prazer ou alegria."

"Se a arte ínfima tem por dever o entreter, se a média tem por mister o embelezar, elevar é o fim da suprema. Por isso toda a arte superior é, ao contrário das outras duas, profundamente triste. Elevar é desumanizar, e o homem se não sente feliz onde se não sente já homem. É certo que a grande arte é humana; o homem, porém, é mais humano que ela."

Fernando Pessoa, in Prosa Publicada em Vida, ed. Richard Zenith

e para ti, começa agora:

"Como, porém, toda a ciência, se tende para a matemática, tende, com isso, para uma abstracção concreta, aplicável à realidade e verificável em seus movimentos físicos; assim toda arte, por mais que se eleve, não pode desprender-se do entendimento e da sensibilidade, em cuja fusão se criou e teve origem. Onde não houver harmonia, equilíbrio de elementos opostos, não haverá ciência nem arte, porque nem haverá vida."



e porque não é possível estarmos naquele pico intenso todos os dias da nossa vida, mas mais ainda, porque eu sei disso!

"Constantemente ela (a arte) nos aponta a nossa imperfeição: já porque, parecendo-nos perfeita, se opõe ao que somos de imperfeitos; já porque, nem ela sendo perfeita, é o sinal maior da imperfeição que somos."

não te quero aperfeiçoar. a arte de te buscar um aperfeiçoamento directo a mim, seria esquecer a imperfeição pela qual me tens cativa. eu tenho a sensibilidade, tu tens o entendimento. preciso da tua objectividade porque senão fico louca e vivo nessa loucura em que me vou afundando e fundamento as razões da minha própria morte.


19.30/2feira/pedro paixao cá

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

gitano

querido joaquin,

daqui a uns tempos, quando formos amigos e eu te mostrar o que me fizeste escrever a seguir ao teu último espectáculo, ainda nos vamos rir e tu hás-de-me dizer:
-ora ainda bem que vieste!

as tuas mulheres fundidas como borracha mole ao chão inflexível do pavilhão, misturam-se em tecidos de saias flamencas e cabelos e batons com os novos sons da tua banda. uma espécie de jazz branco que trazes desta vez enrodilhado na voz das cantantes que choram, quais carpideiras, uma dor que não lhes pertence. e depois aquele violino premoniza desgraça e solidão e as tuas mulheres, loucas, choram a tua mãe morta.
tu, agrilhoado a uma cadeira, e uma mulher que esperneia, qual mancha de sangue, no linólio de microfones que captam cada raspar de sola teu.

entras pelo público adentro num delírio sem género porque toda a gente te adora: abraçam-te quando passas, querem prender o teu olhar no teu e que as aches únicas, uma vez na vida. és de todos. deves-nos isso.

"era uma vez um menino que sonhava voar..." pois, não se ouve o que dizes a seguir porque a histeria sobrepõe-se ao racional. até gostava de saber o que ías contar. pediste silêncio ao público um sem número de vezes e senti a bancada ceder outras tantas, ao bater de pés em tua homenagem.

os solos sincronizados com a percussão e o trompete e o saxofone foram milimétricos e explodi muito à tua custa.

és feito de fogo e o chão que danças é incandescente à tua passagem. a guitarra é dedilhada como uma harpa fosse e eu vejo-me entrar no teu sonho de viagens e voltas ao mundo.

e alguém ao meu lado grita:

- no quites los tacones, nunca!


1.39/6Dec/no seguimento

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

gostei de tudo. porque o senti como eu sinto de forma a gostar sempre. e sempre significa sempre o fim. por isso, obrigada.

podem fechar o pano.

domingo, 24 de outubro de 2010

a arte de bem chorar

entrou na igreja ao som desta música.

chorou naquele dia agarrada à pedra das paredes do mausoléu, antes de dar o primeiro passo. entrou lavada em lágrimas e transportou para o pequeno bonsai de penas coladas a angústia do primeiro passo. chorou durante toda a casta diva. lembrou-se da primeira vez que a ouviu: volvo azul, um sábado de tarde, com o papá. ficou-lhe o gosto por ouvir música no carro, no volume máximo.

quis que soubesse, que também ele já não existia mas a Callas, sim. Ele passou mas ela não. A Casta Diva, não! Ela já ninguém lhe tira.


Desculpa todos os dias te pedir desculpa. "A tiger does not proclaim his tigritude" Wole Soyinka
Sei que nos vamos encontrar um dia num sanatório, como lhes fazia Miguel Esteves Cardoso, e conversaremos, drogadamente, sobre o dia em que te foste embora. e vai ser nesse dia que eu vou pegar na minha cadeira de rodas e vou dar meia volta e deixar-te especado com um fio de baba a cair-te na bata, enquanto eu me afasto para nunca mais me veres.


2'13 / 23 para 24 out 010 /

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

ronda dos sem abrigo 20 out - voltar

Ontem foi dia de ronda.
em todas as quartas feiras que não pude comparecer, todas elas mexiam comigo, às vezes sem me lembrar que era por causa das rondas.era dia de tarefas. boas.

voltar.
entrar na confeitaria S. Remo e ser recebida num grupo sorridente e bem disposto. Fazer os sacos na av. da Boavista e receber, com a alma cheia, as palavras do Artur de boas-vindas aos novos voluntários.

Maria João, Fatima, Ricardo, Fernandes, Carla, Artur, Lia, Joana, Adelino

Começou na Batalha onde uma multidão de caras novas nos recebeu, famintos e cheios de frio. Já não me lembrava como as noites do Porto podem ser tão frias e vazias. Distribuiu-se roupa. A de homem acabou nessa mesma paragem. Precisamos de mais e mais agasalhos. Não vi crianças o que me deixou mais tranquila.

A alegria e boa disposição levaram-nos às lágrimas de tanto rir no carro da Carla. Parámos na Batalha onde estavam apenas duas pessoas. uma delas decidiu presentear-nos com um fado seu meio improvisado, meio ensaiado. foi dificil segurar-me, confesso, mas o que começou por ser uma paródia, era no final, um clamor desesperado que de piada não tinha nada. As rondas são mesmo assim: uma mistura de emoções onde, num momento, não conseguimos parar de rir, no momento a seguir caiem-nos lágrimas pela cara abaixo e encolhemo-nos perante a nossa impotência e pequenez.
Seguimos para o Hospital Sto. António.

Mais uma multidão. Encontramo-nos com os Samaritanos que têm um papel tão importante na rotina destes sem-abrigo. Montei o estaminé no capô do carro e "vendi" mais um punhado de roupa. Novos rostos. Nunca menos. Sempre mais e diferentes. Um alentejano desempregado, com formação em Restauro, contava anedotas de alentejanos.
Terminámos a ronda de ontem num Aleixo despovoado de vidasaudável. Restos de pessoas com buracos no sítio de olhos arrastavam-se pelas paredes. E finalmente fizemos aquilo que me movia, a todas as quartas feiras, eu deixar a minha vida e dá-la a estas pessoas: descemos à Torre 1. O cheiro é indescritível, as imagens murros no estômago. Respira-se morte e não há sacos suficientes e capazes que atenuem nem por 2 segundos a morbidez que ali está instalada.

Não sei explicar como tamanha miséria me atrai tanto mas só no meio deles eu me sinto bem.


21'56 / 21out

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

ao meu amigo Junior

a tua voz de sangue e tonalidade brasileiros, é como se trouxesses nas rastas a voz do caetano, do djavan e do gilberto. e essa gente que te rodeia e não se cala, apenas quando a camara passa e os olhares de além que não engana ninguém.

obrigada por todos os momentos iguais, por tudo em que tocaste e transformaste em Belo e Único.

pelo fado brasileiro em pleno oceano e em axé
pelo sorriso volátil
pelos anéis de metal no cabelo
pela saudade do avatar


passei a minha vida a resover problemas, a maior parte deles nunca existiram.



segunda-feira, 16 de agosto de 2010

summertime

o verão é propício a dilatações. engorda-se, minga-se, sua-se e seca-se. o que era bom passa a ser mau. o que era grande é agora mais pequeno que uma unha e o amor incondicional que eu sentia por ti, perdeu-se no meio dos pinheiros com o vento.
fico sempre espantada com a rapidez, não! o imediatismo das decepções.

há uns tempos atrás decidi, finalmente, ter aulas de iniciação de dança no varão: giríssimo!

única e absoluta observação do meu pai:

"-não há nenhum homem que mereça esse esforço"

pouco tenho para dar. a minha bagagem cabe num cartão multibanco. tudo o que possuo é descartável e não pertenço à localidade que vem escrita na minha cédula. não sei de quem sou, mas contigo, sou de menos um. com a minha mãe sou de menos dois e com a finalização da transação sou de menos três.

não me lembro de perder tanta gente em tão pouco tempo.

nem das cordas do violino pertenço por completo. estou com artrite nos tendões das mãos, portanto, passarei a ser de menos quatro.

só pode ser do calor dos incendios onde, de facto,




1.02/16 aug/dia das meninas no veterinário

domingo, 8 de agosto de 2010

a um soldado desconhecido

crio dentro de mim uma flor. a mesma do principezinho. penteio-a todos os dias, mimo-a e ofereço-lhe o meu tempo. quando a tiveres, vais usufruir das horas de riso em conjunto e do sal das lágrimas de todo o tempo que não te conhecia ainda. chorava a chorar a exaltação de todas as esperas, a tristeza deste "até quando" e tornava maior o caule da flor.

uma porta é, por excelência, a prova maior daquilo que uma mulher sente. tem uma certa influência: a porta abre-se melhor quando a mulher gosta. a minha flor é guardada numa teia de fios de ouro forjados pelo fogo de Hefesto. tenho medo de acordar. não sei porque perdi a coragem de te olhar.tenho uma raíz apodrecida que não tem razão de existir e me cria metástases nas íris e tudo o que desejo é que me entres pelos olhos adentro. can you be my superman?

esta flor que cresce e espalha as suas ramificações nos meus órgãos, hão-de agarrar-te um dia e sugar-te, e fundir-te, e ressequir-te, e a minha carne vai engolir a tua carne e, do meu ventre hás-de refulgir numa explosão de cor, seiva e placenta. alguém fez o nosso amor e desfez o nosso desencontro. quando vieres, faz-me um favor. traz tudo. mas traz mesmo tudo. traz também a saudade. e é como se a sentisse já a vaguear na minha pele, sem saber bem onde pousar.

0.08/domingo/casa do papá

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Constança e Benedita

Querido Adriano,

tal como prometido, agora te explico a minha impossibilidade de te atender o telemóvel:

Benedita e Constança

fui mãe pela segunda e terceira vez e tal como da primeira, sinto-me a flutuar, a uns 5 cm do chão. Sento-me agora, depois de uma noite cheia de alma e fado, com a Benedita no colo e delicio-me com este "começar e novo". o voltar às fraldas.

a música que escoilhi com o Malaquias, em tempos foi este "what you do to me"

hoje, o que me transporta é a alma cheia de puro amor

a quem merece.

2.35/casa

domingo, 11 de julho de 2010

domingos alternativos

há, neste domingos de placidez e ternura, uma volatilidade própria de quem não conta com nada na vida. nascido sem razão de ser. como uma raíz apodrecida e que surge a propósito de nada: é sempre uma boa desculpa e vem sempre a propósito

"lembrei-me de ti sem querer!"

um poema vem sempre a propósito, cabe sempre em qualquer conversa. eugénio de andrade tentava, no mínimo de palavras possível, conter o máximo de mundo num só verso e nascia sempre assim uma "coisa" ("coisa" é uma boa palavra, conteúdo vazio logo espaço para o que se quiser) que atemorece o leitor e deixa-o lívido por instantes.

um poema surge em todo o lado. vive à nossa volta:

"hoje uma gaivota-bebé caiu do ninho. dilacerada pela dor e pela impotência de não sobreviver sem protecção superior, a vida ía-se esmiúçando em pios frágeis. acolhida num ninho de papéis improvisados, em cestos de pão inutilizados, o bebé foi deixado à espera que a mãe o viesse reconhecer. largas horas esperou o povo que se juntava à beira. aproxima-se a gaivota-mãe em voo de àguia-real e numa só bicada arranca-lhe um olho. pedaço de algodão, o resto do bebé vivo emagrece os pios e a mãe dá-lhe a bicada mortal. leva-o agora preso no bico para o alto de uma escadaria e volta para buscar o pedaço de comida no cesto do pão."

a poesia acontece num saco de plástico levado pelo vento (in "American beauty")

há sempre um instante, uma fracção de momento onde podemos intervir.
já que não podemos alterar o começo, podemos mudar o final do poema.


3.54/ao meu rei

terça-feira, 18 de maio de 2010