quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

a conversa ou a crónica do fim anunciado

sentaram-se à mesa para uma conversa. sabiam exactamente do que conversar. sabiam o corpus, o lettering, a banda sonora, o argumento, os actores, o tempo diacrónico e sincrónico, os feedbacks, os timmings, os sujeitos poéticos, os recursos estilísticos, os instrumentos e o materiais utilizados, os cenários e sobretudo, o fim. só não sabiam como começar.

pediu-se da ementa. falou-se do dia que passara, do trabalho, dos contactos, das pessoas que se cruzaram com eles, das conversas com outros e com eles próprios.

bebeu-se água fria. fria como o elefante em cima da mesa que olhava para os dois, sentado como uma pessoa e com a tromba descaída no meio das suas pernas grossas, cinzentas e peludas.

as pessoas no restaurante, também elas esperaram suspensas que a conversa começasse. todos eram actores num jantar-fantasma que já havia sido feito vezes sem conta, na cabeça de cada um deles. o fim sempre parecera inevitável como um capricho de deus, apesar de nunca ter havido motivos para tal. e talvez por isso, aquela conversa-fantasma apenas tenha existido num tempo paralelo, numa outra galáxia que todos sabem existir mas que nunca se viu. há coisas que existem sem se ver. os começos e aquele fim. não era uma despedida. não era uma morte no sentido que se morre apartir do momento em que se nasce. era um fim teatralizado, já vivido muito tempo antes, sem criatividade e sem originalidade. e apesar de terem marcado, como pioneses num mapa mundi, cada momento forte que vivenciaram: falaram dos presentes, das sacas de papel laranja com poemas de amor que furaram o tempo até àqueles dias (porque apartir daquele dia, novos poemas de amor foram escritos), ou com gravações de voz proferidas inusitadamente, ou bandas desenhadas ou músicas eternas que de alguma forma, retractaram para sempre quadros da vida deles enquanto casal. pareciam antever a urgência em não permitir que cada momento desaparecesse mergulhado na memória do inconsciente individual. que cada momento ressurgisse de entre das páginas de uma agenda ou numa fotografia de uma aldeia em pedra, perdida no país que visitaram juntos.

ainda a conversa final não tinha começado e sentiam-se já aturdidos de saudades e arrependidos pelas palavras que ainda não tinham dito, que ainda não se tinham tornado carne mas que laceravam já no peito de cada um.

19h51 / 2 fev / fim e início

Sem comentários:

Enviar um comentário