sábado, 14 de maio de 2011

Dia 2 de Fátima

O meu segundo dia de caminhada começou ás 2h30 da manhã de terça feira. O "jet lag" perturbava a minha rotina física mas, incrivelmente, achava toda aquela azáfama exótica e isso dava-me força. O peito de ambos os pés estava completamente aberto, como quando se joga ténis e os pulsos ficam abertos, a dor era imensa e tinha muita dificuldade em caminhar, depois de, na noite anterior, ter caminhado cerca de 14 horas. Coloquei os meus pés elásticos e isso sim, foi a grande salvação.
Reaprendi a amar o nascer do dia e lembrei-me de Orfeu que, com a sua música, tinha a capacidade de fazer nascer o sol. Os camiões passavam-nos a centímetros e comecei a esmorecer. "Jantar" sopa da pedra e bifanas as 8h30 da manhã e parar duas horas a tratar de pés ensanguentados e furar bolhas de água com agulha e linha de costura. O sol ardia no céu e fustigou-me a pele até ela, neste momento, escamar como a pele das cobras. Pensei nas minhas irmãs a precisarem de atenção, na minha família tão unida, nas minhas cadelas a não entenderem por que é que eu não estava com elas, nos meus amigos distantes mas a apoiarem-me, na minha casa quieta acolhendo a benedita e a constança. Pensei na minha paixão pela arte e no prazer que tenho em viver esta minha vida. Pensei no homem que, para mim, está ao lado do "sr. das Barbas": um de pé, o outro sentado de tão idoso e lembrei-me da conclusão do dia anterior: Fátima põe o mapa sobre a mesa, não dá respostas.

O sol torrou-me de tal forma que me senti no meu extremo. Nesse extremo, a mancar, separei-me do grupo e segui no meu ritmo a cantar sozinha, a abanar os braços de cansaço. Pombal era já ali, mas podia ser 20 km mais á frente que já estava imune a qualquer coisa mais...já não me podia doer mais nada, já não podia estar mais cansada, já não podia mais com o sono, e aí descobri que não tenho limites. Quando o meu corpo bateu na pior dor, ele não se foi abaixo. continuou, sozinho: a minha consciência calou-se e deixou-se comandar mecanicamente. Ninguém desistiu.
Em Pombal, retemperei as minhas energias física e psicologicamente porque fui injectada com a melhor adrenalina.

Neste segundo dia concluo que é preciso fazer Fátima para se perceber MAIS e MELHOR a vida fantástica que vivo. As pequenas epifanias com que me fui deparando na viagem e que são o motor da maior parte dos peregrinos para andarem mais uns quilómetros para a frente. Eu própria as senti: na voz da Carla a cortar o silvado numa oração cantada, na luz dos olhos de peregrinos quando se sentam e tÊm alguém que lhes massaja os pés, no nascer do dia ao som de um terço cantado. Não tÊm esta forma, claro está, mas eu já vivo estas emoções imensas vezes. E isto é assim porque eu estou em contacto com a Arte. Com a Beleza. Com o Amor. Com a paixão. Sem conhecer Fátima, eu já tinha optado, sem saber, por viver um "post-Fátima". Neste sentido, Fátima mostrou-me o que eu já sei. Quantas vezes eu pensei para comigo própria: eu devia estar era com as minhas irmãs! Eu AMO verdadeiramente estar com elas! É com elas, com a minha paixão pela Arte que eu vivo estas epifanias todos os dias da minha vida!

E é por isso que a conclusão de hoje é: Fátima foi o melhor tempo desperdiçado da minha vida.

5 comentários:

  1. As nossas crenças ou descrenças não devem influenciar os pensamentos dos outros!

    Há uma frase muito antiga que diz: "A minha liberdade termina quando começa a do outro!"

    O que para uns é um ponto e para outros uma vírgula, cada um é que sabe o que sente que é e o outro só tem é que respeitar!

    "Não concordar" não é sinónimo de "não aceitar"!


    Não devemos colocar em causa o que outros sentem ou fazem só porque nós achamos que não é o melhor caminho a seguir!

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  2. Este blog é, desde o início, pautado com a minha visão do mundo e da vida. Muito obrigado por o visitares e comentares. Esqueces-te, no entanto, que a minha liberdade começa AQUI e termina AQUI. e AQUI, eu aceito o que os leitores tenham a dizer sobre o assunto, porque vieram cá ter.
    Os textos requerem algum nível de capacidade de interpretação (e devo-te dizer que me apercebi que não foste o único). Nunca, em momento algum nos meus textos, eu disse que não concordo com as peregrinações ou o que tenha que ver com elas, simplesmente porque eu não posso, nem quero, nem tenho capacidade de influenciar ou decidir comportamentos de outras pessoas! Eu só posso falar da minha experiência, rigorosamente mais nada. Nunca coloquei ninguém em causa porque eu também lá estava! E quanto a isso, evoco o teu lado católico do "não julgarás", e ninguém tem nada que ver com o que eu senti ou deixei de sentir. As sensações que vivi em "Fátima" vivo-as eu no meu quotidiano, na minha Arte, na minha família, no meu namorado. já fui, já vi, já sei o que é, já fechei o "dossier". case closed.

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  3. Não me parece que o texto do Sabor da Alma queira ou esteja a influenciar alguém. Bem, pelo menos a mim não me influenciou e eu considero-me uma católica o mais possível praticante.
    A relação que cada um de nós tem com Deus é única e incomparável. ELE, na sua infinita misericórdia, tanto ama o peregrino que vai a Fátima a pé, se sacrifica e emociona como o que vai numa tentativa de descoberta e se surpreende a si próprio porque afinal, nele, não se operou o mesmo tipo de "resultado" em circunstâncias semelhantes.Não nos convençamos que somos detentores da verdade e razão universais. O nosso "olhar" deve ser mais compreensivo principalmente porque não estava em causa promessas, costumes ou tradições e esta experiência foi trocada pelo conforto de muitas outras coisas...
    Tudo isto faz parte de aprendizagem na caminhada da nossa vida e a conclusão a que chegou o Sabor da Alma no segundo dia de Fátima, não significa que seja o mesmo daqui por umas outras tantas caminhadas.

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  4. Lia, mais uma vez, dou-te os parabéns, não só pela tua escrita fabulosa, mas pela pessoa que és.
    Teres trocado o conforto da tua casa, o convívio da tua família e amigos, para experienciares um ritual de tantas pessoas, na ida a Fátima a pé, por variadíssimos motivos.
    Da mesma forma que essas pessoas, com a sua fé, têm o direito de sacrificar o seu corpo até por vezes excedendo os seus limites, também tu, por curiosidade ou por outro motivo qualquer, tens o direito de o fazer.
    A mim parece-me, que com esta experiência, ficaste a valorizar ainda mais a coisas simples do teu dia-a-dia.
    Foste de uma forma completamente desinteressada, sem promessa alguma, simplesmente para saber como é…
    Não é por isso que Deus vai gostar menos de ti.
    Beijinho grande.

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  5. Olá Lia,

    Graças à tua tia Júlia, de quem eu gosto muito, tive a oportunidade de ler estas tuas palavras maravilhosas. Luz. Paz. Caminhos. Energia. Verdade. Depreendo que esta tua experiência te proporcionou o contato com os caminhos de Luz, de Paz. Caminhos da Verticalidade. Emoções passadas para a escrita. Partilha, altruísmo, o Outro , pelo Outro, pelo Próximo. Por ti, porque sim. E muito bem. Para alguns pode parecer estranho, mas é tão fácil! Como se faz? Basta ter alma cheia de coisas boas e partir de coração aberto, vivendo o hoje. O amanhã logo se vê e quando se vir já será hoje. Aprendeste a agradecer o teu grão de paraíso. Ninguém te respondeu, mas descobriste caminhos. E soubeste escolher. O da integridade. Todo o ser humano é capaz de se surpreender a si mesmo, de se superar. Sendo íntegro. Vertical. Dotado de valores simples que nos tornam tão nobres. Descomplicando. Alheios da vida alheia. Estendendo a mão. Mimando...Obrigada Lia.

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