quarta-feira, 11 de maio de 2011

Dia 1 de Fátima

Numa fase de experiências, decidi levar avante uma empresa há muito desejada. Por motivos profissionais, nunca até agora, tive oportunidade de deixar de trabalhar durante uma semana e dedicar-me a este projecto: ir a pé a Fátima. A associação de apoio aos sem-abrigo onde colaboro, vai todos os anos a Fátima a pé e este ano disse: “vai ser agora”.
Sou uma pessoa extremamente religiosa no sentido etimológico de “religação”: a minha espiritualidade não tem que ver com missas (apesar da minha vida ser pautada por rituais). Não tem que ver com rebanhos (apesar de acreditar na força do indivíduo, como membro integrante de um grupo e na sua respectiva coesão grupal). Não tem que ver com massas a recitarem de cor(ação) as mesmas ladainhas (apesar de acreditar piamente na força da palavra verbalizada e nas orações). Não tem que ver com músicas religiosas vs músicas pagãs (quando me curvo perante a força da Arte). A minha religião vem de dentro e religo-me aos indivíduos pela vontade, pela força que nos faz transcender e galvanizar e nos transforma em seres elevados. A minha religião faz-me acreditar realmente em “qualquer coisa” indizível que nos dá uma espécie de super-poderes, onde fazemos coisas que nem sabíamos ser capazes. A minha religião faz-me acreditar em magia.
É meia-noite e vinte de segunda-feira e escrevo duas horas antes de voltar a dar o primeiro passo na etapa de hoje: Coimbra – Pombal. Devia estar a descansar e a tentar dormir mais um pouco, já que as caminhadas são feitas de noite. Sinto os músculos das coxas comprimidos e a minha pulsação nos pés. Não tenho promessa feita que me empurre nesta jornada. Não há nos meus olhos uma senhora em cima da azinheira que me puxe para ela. A minha curiosidade trouxe-me até aqui. E é um motivo tão válido como outro qualquer porque, de facto, eu estou aqui. Caminho. Faço os mesmos esforços e privações. Por isso, se tenho promessa, se pretendo fazer um estudo sociológico, se sou maluquinha, com estas dores, o motivo pouco importa.
“ A dor é a fraqueza a sair do corpo.”
Ouvi esta frase pela boca de uma personal trainner de um novo programa televisivo. Lembrei-me dela quando, ainda nos primeiros 10 klm a caminhar comecei a sentir dor. Primeiro, no joelho direito. Sorri, mudei de pensamentos e passou. Pouco mais tarde, a dor navegou até ao pescoço. Sorri, mudei de pensamento e passou. Mais tarde, as coxas. Os pés e por fim, nada. Cansaço. Senti o meu corpo a resistir, a espreguiçar-se, a resmungar comigo. Pedi-lhe literalmente “desculpa”. Pedi-lhe ajuda. Falei mesmo com os meus pés e disse-lhes o quanto estavam a ser “bons meninos”: não tenho uma única bolha. Agradeci a beleza dos verdes das árvores e as flores roxas, escancaradas de tão abertas, que surgiam nas beiras das ic’s. Vou muitas vezes a cantar sozinha, apesar de grande parte da beleza deste grupo, ser a alegria que se instalou desde que saímos.
A reacção física do meu corpo à Religação é o arrepio. A primeira vez que me arrepiei foi quando, do nada, uma voz feminina se elevou do grupo como um grito de dor, numa melodia tosca e uma seta ao coração. O grupo seguiu-lhe a entoação e aí senti-me ao lado de qualquer coisa: se é Deus, Jesus, se tem barbas e cajado ou se é uma mulher loira de túnica, pouco importa. Não é essa a resposta que procuro.
Caminhámos 8 horas. Quase em Coimbra, entrámos numa capela onde se orava a cantar, já o sol ardia na pele. Há coincidências (que não são) difíceis de acreditar: o padre que ministrava era o padre da minha freguesia de infância, a capela pertencia a uma família conhecida minha da mesma freguesia, encontrei alunas minhas e todos juntos “banhámo-nos” naquela nave de luz, flores e música. Aqui se deu o meu segundo arrepio. O meu grupo deixou toda a gente sair da capela e aproximou-se do altar. De mãos dadas elevadas aos céus, sem combinar, deu-se início a um repertório que nem sabia existir de recitais cristãos. Vi os meus colegas de caminhada chorarem descontroladamente e senti, confesso, senti quase uma inveja por, naquele momento, eles estarem a ver algo que eu não estava a conseguir ver. Deixei de lhes prestar atenção e concentrei-me unicamente na energia daquela capela e assustei-me, porque me arrepiei. Abri os olhos de repente, ligeiramente incomodada. As pessoas querem sempre compreender, perceber, racionalizar. Eu tenho feito um esforço para deixar de pensar com a cabeça e pensar com o coração, mas ainda sinto alguma resistência do meu corpo. E o que aconteceu ali foi isso mesmo: o corpo a sentir na pele a energia e o meu intelecto a mandar abrir os olhos e a parar com aquela “inexplicabilidade”. No final, tentei falar com a Carla (uma mulher que gosto como se fosse a minha irmã mais velha) mas ela estava na sua própria peregrinação e não teve tempo para mim. Limitou-se a olhar-me, sorrir e dizer: “Chora-se porque se está comovido.” E pronto, eu comi e engoli. Só senti isto na Arte, ao ouvir certas peças musicais, ao ler certos poemas, com a beleza de certas pessoas, com a bondade e certos gestos que me tocaram.
N a subida do Monte de Sta. Clara foi a única altura que “me caiu a moeda” e lembro-me de pensar: “Realmente, uma pessoa para se sujeitar a este esforço físico tem mesmo de querer muito, tem de ter uma vontade extra-sensorial”. Já consigo perceber o papel do sacrifício e do esforço mas não o consigo assimilar para mim. A vida parece-me demasiado ardilosa já, para a pormos à prova com novos sacrifícios e angústias. Se ela falasse, não sei se seria isso que ela nos ía pedir. Não me parece que seja a única via.
Sentada nesta cama, de banho tomado, hoje, segunda-feira, primeiro dia de caminhada, concluo: a peregrinação não traz respostas. Mostra caminhos. Abre mapas sobre a mesa. Põe hipóteses. Vira a moeda para lhe vermos o outro lado.

00’57 / Coimbra

3 comentários:

  1. Liinha, fico sempre emocionada com os teus escritos. Para além de escreveres deliciosamente bem, consegues-nos transmitir tudo aquilo que nela descreves, duma forma emocionante. Muitos Parabéns. Beijinhos.
    (Titinha)

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  2. Para mim, ser peregrino é entrar no espírito de entreajuda ... no espírito de sacrifício e atenção por nós e pelo próximo!

    E não olhemos apenas ao lado religioso!

    O acreditar num Deus que nos guia, num Deus bom ou mau, num Deus severo ou eternamente bondoso, num Deus que está sempre connosco ou que nos está a voltar as costas, num Deus pura e simplesmente...não é o que faz ser peregrino!

    Não é acreditar em Deus que tem de fazer de nós melhor ou pior do que o outro ... A nossa consciência é que nos deve lá levar!

    No entanto, quem consegue acreditar em Deus, viver Nele e deixar que Ele viva em si, consegue tirar muito mais proveito da vida!

    AH! Tem ainda mais uma vantagem ... não inveja o que o outro sente!


    Ricardo Matos

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  3. Vivas tu muitos anos na graça de Deus, tentando ser sempre um melhor cristão, Ricardo.

    bem hajas

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