segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Primeira dança

Uniu-se, incerta.
Juntou o seu corpo a um corpo que não conhecia. não era a primeira vez mas obrigava-se sempre a continuar.
as decepções também ajudam a perceber que há mundo para além do mundo maior. nesse caso, se apenas conhecia um corpo e ele desaparecera, também era justo pensar que não era por isso que todos os corpos desapareceriam da face da terra.
obrigou-se a continuar. Voltou a unir-se, incerta. de novo o suor. de novo o cheiro. nova camisa, novo tecido. novo respirar. nova respiração. novo arfar. novo gingar. nova suspensão. suspensão nova. aquilo não era novo. era a parte de um todo que já só existia em forma de nuvem, de lembrança feliz. deixou-se ficar. permitiu-se aspirar de pulmões inchados, e olhos fechados, aquela parte de um todo tão maior mas tão morto. entregou-se como se entrega uma virgem ao primeiro namorado: acreditando que é para sempre.

não falaram. não se conheciam e não estava ali para fazer amigos.
as bacias unidas. as coxas juntas com vontade própria, e elas sim, num diálogo adolescente desenfreado e de curiosidade. quatro coxa intercaladas a falar uma por cima da outra:

como te chamas?
estás a sentir o que eu sinto?
é tão raro!
só me aconteceu uma vez...
nem sabia que era possível
e o que quer dizer?
dançamos outra?

aquele era diferente. soube-o no primeiro acorde. fechou os olhos porque o exterior não se coadunava com o movimento interior. os rostos suados e unidos numa urgência de boca, de línguas, de saliva. fechou os olhos por despeito. fechou os olhos como uma traidora. como se assim o crime fosse menos grave. os sexos não se tocavam mas o amor estava ali, todo feito na primeira música. o amor que suporta o mundo e que o faz avançar numa loucura decepcionante. o único motivo por que vale a pena morrer de amor.
dançaram três danças seguidas porque a moral a isso permitia. não trocaram nomes, nem contactos. afastou-se numa despedida fria e impetuosa, um pouco triste e cruel mas nas suas veias voltou a correr sangue e com ele, vida. ah! mas o corpo voltou a dar de si e isso não podia negar. 

Sentiu. Pela primeira vez em muito tempo, o corpo saiu da sua letargia, não estava morto. Mas sair da morte implicava voltar a correr riscos de viver e com isso atrever-se a ser feliz.  E por isso, foi-se embora para nunca mais o ver.


para a Susana Lima


domingo, 14 de janeiro de 2018

Pastelaria

1

Anda pela vida como quem folheia um catálogo La Redoute. Há gente a mais e pessoas a menos. Sente-se inserido. Feliz, a saber que não morreria por excesso. O que vem, vem sempre por bem. Mediano na medição de grandes aventuras cardíacas. Só na cama se excede, pelo gozo de deixar a marca positiva. Como no ginásio, frente aos halteres, onde escolhe o peso acima só para dizer-se que pode. Não envelhece porque não quer respostas. No primeiro dia que se questione, então aí sabe que começou o declínio.

2

Dez minutos num silêncio continuado que lhe mudou a vida. Não a tivera visto e hoje em dia estaria na cama, descansado a dormir, agarrada ao amor daquela vida.

3

Entra no carro com o rádio a passar o hit do momento. Fecha a velha porta, recente na altura. Pensava que não ía durar para sempre. Sente-se apanhado. Tenta perceber o que tem diante de si. Não pode. Não consegue. Aquilo era outra coisa. O que quer que fosse. Mas uma coisa outra, assombrosa.

4

"O que te disse ele? Achas que gostou de mim." Que interessa? O corpo a reflectir. Os músculos a queixar. O primeiro acto consumado e o encore que tardava em chegar. Jantaram porque tinham de fazer alguma coisa no entretanto e a boa educação dizia que não se devia faltar a compromissos de família. A segunda foi no segundo. Paredes brancas testemunharam mortes sucessivas.

5

Dois olhos: um para cada lado. Não se viu no meio que é onde se está. A balança a fazer batota e foi a memória que ganhou.

6

"Tu não és mulher, não podes ver"

"Arrasto-me contigo até à morte...por favor"

A liberdade é pavorosa. A responsabilidade do amor e de tomar conta de um coração que não é nosso. A memória só diz o que lhe apraz. Não é correcta com a pessoa. Deixa-se ficar no mesmo sítio e desfez-se o sonho. Tão pouco lhe pesava o coração de pedra.

7

A farinha do pão é a mesma. As massas unem-se num encontro de fusão sem penetrados nem penetrantes. As mãos do sábio pasteleiro são grossas como templos e fluidos como sombras, perpetuadas em pão fresco, quente, húmido e com a terrível vontade de nunca parar de comer, estas mãos que fazem e desfazem. Esticam e encolhem, unem e separam.

8

Chegaram de mãos dadas na terra que era dela. E então no abismo do tempo, sacudiram-se e do lençol branco fez-se a manta e da manta fez-se o sudário.

9

Acordou a meio da noite, sozinho na cama e na vida. Surpresa de um sonho que não contava. Premonição. O telemóvel piscava e tremia junto ao peito e um resquício, um fantasma a desvanecer-se no fundo da parede do quarto.

10

O pasteleiro adicionou água. Depois o açúcar. E ele veio à tona da água e morreu.

11

Kundera falou da memória e de como por vezes um simples gesto aviva todo um mundo que já foi esquecido. Neste caso, foi o cheiro. O cheiro inesquecível do cabelo suado. Febre feliz de um conto de fadas onde, no final da noite, o príncipe deixa a princesa para dançar com as outras meninas do baile.

12

Escreveu-lhe no Outono, final de tarde e de vida. Sentado na cadeira da cozinha, as palavras saíam-lhe em vómitos. A folha do caderno era como um saco de boxe. Um colo que o abraçava quando já todos tinham saído de casa. Disse-lhe:

"Escrevo-te agora porque dão-me seis meses a um ano e preciso de tirar esta coisa, esta dor que me esventra e me tira o ar. O meu coração está nos pés. O meu peso é cimento. O meu corpo curvado termina num fio de lágrimas que gotejam esta folha de papel... tanto e não sei que te diga. A minha vida foi silêncio desde que me fui embora. Ao fugir de ti, fugi de mim e talvez por isso esta maldita doença que me corrói as entranhas. Quando a cortina se abrir perante os meus olhos cansados quero que saibas que foi a tua imagem que vi quando nasceram os meus filhos. Também foi o teu nome que ouvi de todas as vezes que me casei. Que te segui como um cão de fila, escondido nas esquinas, sem coragem. Quando o pano descer, espero finalmente chegar à paz plena de me conseguir perdoar por não ter lutado mais um bocadinho."



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terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Medição

As lágrimas
cobriram o fundo da taça de vidro
que pintaste à mão.

Formou-se uma ligeira onda
e como uma criança,
rodei a taça de modo que também as paredes
ficassem mergulhadas
no teu abandono.

Nunca medi lágrimas
mas acho que me tiravam a sede
numa noite quente de Havana.


19.20 /
10 Janeiro morto 2018