domingo, 14 de janeiro de 2018

Pastelaria

1

Anda pela vida como quem folheia um catálogo La Redoute. Há gente a mais e pessoas a menos. Sente-se inserido. Feliz, a saber que não morreria por excesso. O que vem, vem sempre por bem. Mediano na medição de grandes aventuras cardíacas. Só na cama se excede, pelo gozo de deixar a marca positiva. Como no ginásio, frente aos halteres, onde escolhe o peso acima só para dizer-se que pode. Não envelhece porque não quer respostas. No primeiro dia que se questione, então aí sabe que começou o declínio.

2

Dez minutos num silêncio continuado que lhe mudou a vida. Não a tivera visto e hoje em dia estaria na cama, descansado a dormir, agarrada ao amor daquela vida.

3

Entra no carro com o rádio a passar o hit do momento. Fecha a velha porta, recente na altura. Pensava que não ía durar para sempre. Sente-se apanhado. Tenta perceber o que tem diante de si. Não pode. Não consegue. Aquilo era outra coisa. O que quer que fosse. Mas uma coisa outra, assombrosa.

4

"O que te disse ele? Achas que gostou de mim." Que interessa? O corpo a reflectir. Os músculos a queixar. O primeiro acto consumado e o encore que tardava em chegar. Jantaram porque tinham de fazer alguma coisa no entretanto e a boa educação dizia que não se devia faltar a compromissos de família. A segunda foi no segundo. Paredes brancas testemunharam mortes sucessivas.

5

Dois olhos: um para cada lado. Não se viu no meio que é onde se está. A balança a fazer batota e foi a memória que ganhou.

6

"Tu não és mulher, não podes ver"

"Arrasto-me contigo até à morte...por favor"

A liberdade é pavorosa. A responsabilidade do amor e de tomar conta de um coração que não é nosso. A memória só diz o que lhe apraz. Não é correcta com a pessoa. Deixa-se ficar no mesmo sítio e desfez-se o sonho. Tão pouco lhe pesava o coração de pedra.

7

A farinha do pão é a mesma. As massas unem-se num encontro de fusão sem penetrados nem penetrantes. As mãos do sábio pasteleiro são grossas como templos e fluidos como sombras, perpetuadas em pão fresco, quente, húmido e com a terrível vontade de nunca parar de comer, estas mãos que fazem e desfazem. Esticam e encolhem, unem e separam.

8

Chegaram de mãos dadas na terra que era dela. E então no abismo do tempo, sacudiram-se e do lençol branco fez-se a manta e da manta fez-se o sudário.

9

Acordou a meio da noite, sozinho na cama e na vida. Surpresa de um sonho que não contava. Premonição. O telemóvel piscava e tremia junto ao peito e um resquício, um fantasma a desvanecer-se no fundo da parede do quarto.

10

O pasteleiro adicionou água. Depois o açúcar. E ele veio à tona da água e morreu.

11

Kundera falou da memória e de como por vezes um simples gesto aviva todo um mundo que já foi esquecido. Neste caso, foi o cheiro. O cheiro inesquecível do cabelo suado. Febre feliz de um conto de fadas onde, no final da noite, o príncipe deixa a princesa para dançar com as outras meninas do baile.

12

Escreveu-lhe no Outono, final de tarde e de vida. Sentado na cadeira da cozinha, as palavras saíam-lhe em vómitos. A folha do caderno era como um saco de boxe. Um colo que o abraçava quando já todos tinham saído de casa. Disse-lhe:

"Escrevo-te agora porque dão-me seis meses a um ano e preciso de tirar esta coisa, esta dor que me esventra e me tira o ar. O meu coração está nos pés. O meu peso é cimento. O meu corpo curvado termina num fio de lágrimas que gotejam esta folha de papel... tanto e não sei que te diga. A minha vida foi silêncio desde que me fui embora. Ao fugir de ti, fugi de mim e talvez por isso esta maldita doença que me corrói as entranhas. Quando a cortina se abrir perante os meus olhos cansados quero que saibas que foi a tua imagem que vi quando nasceram os meus filhos. Também foi o teu nome que ouvi de todas as vezes que me casei. Que te segui como um cão de fila, escondido nas esquinas, sem coragem. Quando o pano descer, espero finalmente chegar à paz plena de me conseguir perdoar por não ter lutado mais um bocadinho."



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1 comentário:

  1. Isto é mesmo tudo o que te vem na alma, no momento de forma crua e nua, sem filtros ou processamentos ... <3
    PV

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