quinta-feira, 19 de maio de 2011

Dia 3 de Fátima

Fátima não resolve, revela.
O que parece bom, revela-se melhor ainda. O que já se adivinhava, revela-se pior. Fátima foi translúcida, de uma clarividência que cegou por instantes de tão óbvia. Deve ter sido esta a ofuscação dos milagres. E eu juro que acredito em milagres, porque os senti e continuo a sentir todos os dias. Os milagres dão-se através de indivíduos anónimos que, no último dia das suas forças, esquecem-se das suas próprias dores e pegam noutros peregrinos e ajudam-nos e transportam-nos até aos portões da ágora católica. Os milagres dão-se todos os dias, através de nobres indivíduos aturdidos de dores nos músculos mas que continuam a cantar e a puxar por outros anónimos para não desistirem das suas demandas. Os milagres dão-se em alturas de aperto de sede, mas onde restam forças para orar em 15 pequenos altares, à margem das ruas, em declives que convidam a desistir.
A última etapa (Pombal-Fátima) revelou-se a mais bucólica e por isso mesmo, a mais bonita de percorrer. Atravessando bosques Blair Witch Project, à luz de lanternas rarefeitas e conversas frescas e inusitadas onde ficou claro que o "mundo é mesmo um ovo", passou-se uma noite de gelo a rasgar a pele. Dormitei mais que uma vez, encostada ao capô de um automóvel estacionado. Cedo, deparámos com um altar-montra onde cada grupo de peregrinos deixava uma recordação pessoal.
O almoço, sentados em roda num coreto de aldeia, foi o momento alto de toda a minha jornada. Presenciei o verdadeiro milagre de Fátima porque vi a beleza simples da Arte incarnada na voz de alguns membros do grupo. Individualmente e, principalmente, por não terem consciência disso mesmo, eles tocaram ao de leve o dorso da Beleza Transcendente de Deus. E, se realmente há mesmo um Deus, eu apontaria aquele o momento em que ele deixou que os humanos O vissem. Porque Ele manifestou-se espontâneamente, sem que O procurassem, O provocassem ou Lhe dessem promessas a cumprir. Deus apenas foi. Ali, naquele lugarejo perdido no caminho para Fátima, em letras de fados e de canções populares, cantados quase à desgarrada. As lágrimas soltaram-se-me e caíam desamparadas na minha t-shirt, manchando-a. Só viu Deus quem estava de fora. Os intervenientes não tiveram noção disso e é pena. Porque procuram Deus desalmadamente no exterior de si e não perceberam que fazem parte de um todo, grande muito grande e belo. O meu Deus chama-se Arte, porque é aí que eu encontro Beleza, Harmonia, Elevação, Sublimação. É a Arte que me galvaniza e que me excita. Ninguém é mais religioso que eu por o antropónimo "Deus" ser diferente. Escusem-se a ostracizar-me por as palavras das minhas orações não serem as mesmas. Não me convencem. Não têm um canal de comunicação mais directo que o meu, lamento. Desengane-se quem se julga mais "apto". Contudo, entendo agora porque, ainda assim, se continua a ir a Fátima, ano após ano.

Entrar no santuário foi, antes de mais, um alívio. O grupo demonstrou essa alegria nos beijos e abraços que trocou entre si, nos "parabéns" e "sucessos" desejados. Homens e mulheres arrastavam-se, de joelhos, entre distâncias intermináveis. Espantou-me os avisos legíveis pelas paredes do templo principalmente de manutenção de ordem pública. Comprei velas castanhas e fininhas que coloquei na pira. O desejo que peço todos os dias e todos os dias me é concedido: saúde para mim, para a minha família. Amar e ser amada e o desejo de gerar a minha própria família. Não será atendido meu pedido agora que o disse em voz alta?
Conheci a Igreja-Mor que, pelo seu tamanho grandioso, mais parecia uma sala de espectáculos, muito melhor que a maior parte das salas que conheço. Amei o mural em talha dourada e o Cristo portentoso que pairava sobre o altar. Não me arrepiei.

Fátima prolongou-se pelos dias vindouros. Precisei de digerir Fátima, mas isso até foi o mais rápido de digerir. O resto não.

sábado, 14 de maio de 2011

Dia 2 de Fátima

O meu segundo dia de caminhada começou ás 2h30 da manhã de terça feira. O "jet lag" perturbava a minha rotina física mas, incrivelmente, achava toda aquela azáfama exótica e isso dava-me força. O peito de ambos os pés estava completamente aberto, como quando se joga ténis e os pulsos ficam abertos, a dor era imensa e tinha muita dificuldade em caminhar, depois de, na noite anterior, ter caminhado cerca de 14 horas. Coloquei os meus pés elásticos e isso sim, foi a grande salvação.
Reaprendi a amar o nascer do dia e lembrei-me de Orfeu que, com a sua música, tinha a capacidade de fazer nascer o sol. Os camiões passavam-nos a centímetros e comecei a esmorecer. "Jantar" sopa da pedra e bifanas as 8h30 da manhã e parar duas horas a tratar de pés ensanguentados e furar bolhas de água com agulha e linha de costura. O sol ardia no céu e fustigou-me a pele até ela, neste momento, escamar como a pele das cobras. Pensei nas minhas irmãs a precisarem de atenção, na minha família tão unida, nas minhas cadelas a não entenderem por que é que eu não estava com elas, nos meus amigos distantes mas a apoiarem-me, na minha casa quieta acolhendo a benedita e a constança. Pensei na minha paixão pela arte e no prazer que tenho em viver esta minha vida. Pensei no homem que, para mim, está ao lado do "sr. das Barbas": um de pé, o outro sentado de tão idoso e lembrei-me da conclusão do dia anterior: Fátima põe o mapa sobre a mesa, não dá respostas.

O sol torrou-me de tal forma que me senti no meu extremo. Nesse extremo, a mancar, separei-me do grupo e segui no meu ritmo a cantar sozinha, a abanar os braços de cansaço. Pombal era já ali, mas podia ser 20 km mais á frente que já estava imune a qualquer coisa mais...já não me podia doer mais nada, já não podia estar mais cansada, já não podia mais com o sono, e aí descobri que não tenho limites. Quando o meu corpo bateu na pior dor, ele não se foi abaixo. continuou, sozinho: a minha consciência calou-se e deixou-se comandar mecanicamente. Ninguém desistiu.
Em Pombal, retemperei as minhas energias física e psicologicamente porque fui injectada com a melhor adrenalina.

Neste segundo dia concluo que é preciso fazer Fátima para se perceber MAIS e MELHOR a vida fantástica que vivo. As pequenas epifanias com que me fui deparando na viagem e que são o motor da maior parte dos peregrinos para andarem mais uns quilómetros para a frente. Eu própria as senti: na voz da Carla a cortar o silvado numa oração cantada, na luz dos olhos de peregrinos quando se sentam e tÊm alguém que lhes massaja os pés, no nascer do dia ao som de um terço cantado. Não tÊm esta forma, claro está, mas eu já vivo estas emoções imensas vezes. E isto é assim porque eu estou em contacto com a Arte. Com a Beleza. Com o Amor. Com a paixão. Sem conhecer Fátima, eu já tinha optado, sem saber, por viver um "post-Fátima". Neste sentido, Fátima mostrou-me o que eu já sei. Quantas vezes eu pensei para comigo própria: eu devia estar era com as minhas irmãs! Eu AMO verdadeiramente estar com elas! É com elas, com a minha paixão pela Arte que eu vivo estas epifanias todos os dias da minha vida!

E é por isso que a conclusão de hoje é: Fátima foi o melhor tempo desperdiçado da minha vida.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Dia 1 de Fátima

Numa fase de experiências, decidi levar avante uma empresa há muito desejada. Por motivos profissionais, nunca até agora, tive oportunidade de deixar de trabalhar durante uma semana e dedicar-me a este projecto: ir a pé a Fátima. A associação de apoio aos sem-abrigo onde colaboro, vai todos os anos a Fátima a pé e este ano disse: “vai ser agora”.
Sou uma pessoa extremamente religiosa no sentido etimológico de “religação”: a minha espiritualidade não tem que ver com missas (apesar da minha vida ser pautada por rituais). Não tem que ver com rebanhos (apesar de acreditar na força do indivíduo, como membro integrante de um grupo e na sua respectiva coesão grupal). Não tem que ver com massas a recitarem de cor(ação) as mesmas ladainhas (apesar de acreditar piamente na força da palavra verbalizada e nas orações). Não tem que ver com músicas religiosas vs músicas pagãs (quando me curvo perante a força da Arte). A minha religião vem de dentro e religo-me aos indivíduos pela vontade, pela força que nos faz transcender e galvanizar e nos transforma em seres elevados. A minha religião faz-me acreditar realmente em “qualquer coisa” indizível que nos dá uma espécie de super-poderes, onde fazemos coisas que nem sabíamos ser capazes. A minha religião faz-me acreditar em magia.
É meia-noite e vinte de segunda-feira e escrevo duas horas antes de voltar a dar o primeiro passo na etapa de hoje: Coimbra – Pombal. Devia estar a descansar e a tentar dormir mais um pouco, já que as caminhadas são feitas de noite. Sinto os músculos das coxas comprimidos e a minha pulsação nos pés. Não tenho promessa feita que me empurre nesta jornada. Não há nos meus olhos uma senhora em cima da azinheira que me puxe para ela. A minha curiosidade trouxe-me até aqui. E é um motivo tão válido como outro qualquer porque, de facto, eu estou aqui. Caminho. Faço os mesmos esforços e privações. Por isso, se tenho promessa, se pretendo fazer um estudo sociológico, se sou maluquinha, com estas dores, o motivo pouco importa.
“ A dor é a fraqueza a sair do corpo.”
Ouvi esta frase pela boca de uma personal trainner de um novo programa televisivo. Lembrei-me dela quando, ainda nos primeiros 10 klm a caminhar comecei a sentir dor. Primeiro, no joelho direito. Sorri, mudei de pensamentos e passou. Pouco mais tarde, a dor navegou até ao pescoço. Sorri, mudei de pensamento e passou. Mais tarde, as coxas. Os pés e por fim, nada. Cansaço. Senti o meu corpo a resistir, a espreguiçar-se, a resmungar comigo. Pedi-lhe literalmente “desculpa”. Pedi-lhe ajuda. Falei mesmo com os meus pés e disse-lhes o quanto estavam a ser “bons meninos”: não tenho uma única bolha. Agradeci a beleza dos verdes das árvores e as flores roxas, escancaradas de tão abertas, que surgiam nas beiras das ic’s. Vou muitas vezes a cantar sozinha, apesar de grande parte da beleza deste grupo, ser a alegria que se instalou desde que saímos.
A reacção física do meu corpo à Religação é o arrepio. A primeira vez que me arrepiei foi quando, do nada, uma voz feminina se elevou do grupo como um grito de dor, numa melodia tosca e uma seta ao coração. O grupo seguiu-lhe a entoação e aí senti-me ao lado de qualquer coisa: se é Deus, Jesus, se tem barbas e cajado ou se é uma mulher loira de túnica, pouco importa. Não é essa a resposta que procuro.
Caminhámos 8 horas. Quase em Coimbra, entrámos numa capela onde se orava a cantar, já o sol ardia na pele. Há coincidências (que não são) difíceis de acreditar: o padre que ministrava era o padre da minha freguesia de infância, a capela pertencia a uma família conhecida minha da mesma freguesia, encontrei alunas minhas e todos juntos “banhámo-nos” naquela nave de luz, flores e música. Aqui se deu o meu segundo arrepio. O meu grupo deixou toda a gente sair da capela e aproximou-se do altar. De mãos dadas elevadas aos céus, sem combinar, deu-se início a um repertório que nem sabia existir de recitais cristãos. Vi os meus colegas de caminhada chorarem descontroladamente e senti, confesso, senti quase uma inveja por, naquele momento, eles estarem a ver algo que eu não estava a conseguir ver. Deixei de lhes prestar atenção e concentrei-me unicamente na energia daquela capela e assustei-me, porque me arrepiei. Abri os olhos de repente, ligeiramente incomodada. As pessoas querem sempre compreender, perceber, racionalizar. Eu tenho feito um esforço para deixar de pensar com a cabeça e pensar com o coração, mas ainda sinto alguma resistência do meu corpo. E o que aconteceu ali foi isso mesmo: o corpo a sentir na pele a energia e o meu intelecto a mandar abrir os olhos e a parar com aquela “inexplicabilidade”. No final, tentei falar com a Carla (uma mulher que gosto como se fosse a minha irmã mais velha) mas ela estava na sua própria peregrinação e não teve tempo para mim. Limitou-se a olhar-me, sorrir e dizer: “Chora-se porque se está comovido.” E pronto, eu comi e engoli. Só senti isto na Arte, ao ouvir certas peças musicais, ao ler certos poemas, com a beleza de certas pessoas, com a bondade e certos gestos que me tocaram.
N a subida do Monte de Sta. Clara foi a única altura que “me caiu a moeda” e lembro-me de pensar: “Realmente, uma pessoa para se sujeitar a este esforço físico tem mesmo de querer muito, tem de ter uma vontade extra-sensorial”. Já consigo perceber o papel do sacrifício e do esforço mas não o consigo assimilar para mim. A vida parece-me demasiado ardilosa já, para a pormos à prova com novos sacrifícios e angústias. Se ela falasse, não sei se seria isso que ela nos ía pedir. Não me parece que seja a única via.
Sentada nesta cama, de banho tomado, hoje, segunda-feira, primeiro dia de caminhada, concluo: a peregrinação não traz respostas. Mostra caminhos. Abre mapas sobre a mesa. Põe hipóteses. Vira a moeda para lhe vermos o outro lado.

00’57 / Coimbra