segunda-feira, 24 de junho de 2019

La La Land ou a origem de um milagre

sou cinco pontas de dedos e os restos de ideias e memórias. sobram-me as rugas na testa e nem o sorriso está desbloqueado, porque tenho o rosto encostadoao teu crânio. estás deitada no meu peito, estendida pelo corpo abaixo com os braços abertos em posição de quem confia, de quem não tem medo nem abysmos. deixas-me a possibilidade de entrar na tua La La Land, de te cheirar essa tua impressão digital a que toda gente chama cabelo (porque tenho o nariz enterrado nesta relva negra e perfumada, como se acabada de cortar numa manhã de orvalho). deixas-me a mão direita livre para poder escrever. o meu corpo bloqueado para ti. não ouso mexer-me, não quero que sintas a minha aflição de não ser capaz de te chegar. subiste o nível. obrigas-me a ser mais saudável. mais forte. mais sábia. guias-me para ser maior, ainda que proporcionalmente, abra cada vez mais o receio de não te chegar. e se não te chegar, meu amor? e se tudo o que sou e que tenho não for suficiente para despoletar o teu potencial? és uma missão. uma responsabilidade: dar-te as ferramentas para te saberes desenvencilhar neste mundo. e se não tiver as ferramentas ideais para ti? e se não te souber entender? e se ficar aquem daquilo que poderias ter sido?

vieste não se sabe de onde. não se sabe como. a tua origem é desconhecida. tanto que chamei por ti e agora que chegaste parece que sempre cá estiveste. o espaço que preencheste, como uma peça de tétris, parece-me agora mais que previsível, testado e aprovado. ainda estou a tentar perceber como tudo aconteceu mas creio que nunca vou perceber de facto.

o momento em que te trouxeram para junto de mim, cinzenta e visceral, materializada num ser (porque os milagres precisam de ser vistos para se saber que é um milagre) foi o momento onde a minha cabeça esvaziou. nada me preparou para aquele momento. e, de facto, por trabalhar com arte e poesia, talvez pudesse eventualmente já ter passado por momentos assim, que me aproximassem do transcendental, da galvanização. mas de facto, nada me preparou para ti. e com o olhar muito aberto preso na luz do bloco operatório, eis o que consegui balbuciar:

- podia morrer neste momento


12,14
24 Junho 2019
casa, a ouvir:
https://www.youtube.com/watch?v=oTN7xO6emU0&list=RDBbgEbWaLNAE&index=2

Sem comentários:

Enviar um comentário