quarta-feira, 5 de junho de 2019

A morte nascida

Tarde de hoje no cemitério.
Faz hoje uma semana que estava a entrar em trabalho de parto. 

O sentido de reposição que se torna inevitável ascender cá para fora. De uma inevitabilidade que me faz escrever quando há tanto tempo não o fazia. Nem sempre o "faz sentido" desencadeia num resultado. Às vezes, deixa-se estar quieto, só a fazer sentido, mas sem sentido prático. E faz sentido: neste mundo tão sem sentido e tão pouco prático, onde medimos a nossa imortalidade na quantidade de "presentes" que se asseguram a cada like. 

Há 36 anos que conhecia o mesmo rosto: as mesmas rugas, o mesmo cabelo branco, os lóbulos repuxados pelo peso dos brincos de ouro. Os olhos azuis vidrados por onde eram tricotadas as mais belas golas de vestidos de comunhão. O Verdegar e o Vira, a Cana Verde e o Malhão cantados no falsete mais agudo. O maior amor pelo Rodrigo e pela Mariana. 

"Oh mulher estás tão gorda!
Estava a brincar..."

Uma pessoa nunca morre de facto. Deixa-se ficar ano mundo dos vivos, encostada a uma expressão, a uma peça de tricot:

"Minha Liínha!"

A Lindinha era o que sempre foi. Nunca mudou. Tenho-a no meu pensamento com a mesma imagem desde que a conheço. Nunca me lembrei que pudesse deixar de estar. Nunca tal me passou pela cabeça. 

Rodrigo, meu amor, não há nada para dizer. Não há consolo possível. Não consigo sair da tua imagem, encostado às grades, desesperado de dor, desamparado. Do Dinho , de um estoicismo doentio que não lhe conhecia.

Depois voltar a casa, para os braços da Luz, numa montanha russa de emoções. Faz hoje uma semana estava a entrar num trabalho que mudou a minha vida para sempre. Sinto no entanto que só faltava ela. A peça que se encaixou, sem esforço, que sempre fez parte, só ainda não tinha chegado. A Luz vai conhecer a Lindinha: a cada peça de tricot que lhe mostre, há-de aprender a amar o que é feito com as mãos, como as brancas mãos enrugadas, unhas compridas com ligeiras saliências ao longo da unha, a pele ligeiramente manchada. A Luz há-de conhecer a Lindinha porque, de facto, há um legado que se prolifera nas gerações que venham. 

Nascer e morrer é a mesma coisa. Um existe no outro. Morro, logo nasço a seguir. 
Preciso de estar morta para nascer.   

00,31
4f para 5f
5 para 6 Junho 2019
casa
Luz a dormir

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