quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

A capacidade de chorar

 Acho que estou a perder a capacidade de chorar. Não sei se é da idade. Não sei se pode passar pelo processo de envelhecer o que é uma pena porque até estou a gostar de envelhecer. Não estava preparada era para isto: não consigo chorar. Não sei se isto também vos acontece. Tenho o motivo, tenho o sentimento, sinto a vontade, entendo o por quê mas depois...nada. Parece que falta a conexão ocular e não consigo chorar.

É tão redondo como isto: estou a perder a capacidade de chorar, de transformar em água as coisas que estão lá no fundo do meu ser, aquelas que já só saem com água de limpeza. Já não sobe. Para os sensíveis, este processo de transformar em água as nossas emoções é algo que nos faz falta. Enquanto não chorar, o assunto não passa. Pelo menos, comigo sempre foi assim. 

"Estou a precisar de chorar", dizia eu para resolver a questão. Agora continuo a dizer isto, mas já nada acontece. Estou seca por dentro.

Não sei se serão as machadadas da vida. Das frustrações, quero eu dizer. Sei lá o que quero dizer. Também me sinto a perder a poesia. Nem sei se me devo preocupar.

Preciso urgentemente de chorar mas como posso fazer isso? Que músicas devo ouvir? Ou que livros devo ler? Algum filme, talvez? 

Paralelamente, caem-me lágrimas nos momentos mais insólitos: numa entrevista, num balcão de atendimento, numa consulta médica ou no seguimento de alguma coisa que a minha filha me diz. Se às vezes quero chorar e não consigo, por outro lado, há momentos em que nem tenho tempo para reprimir as lágrimas: elas soltam-se e rolam rosto abaixo. 

Há uma esquizofrenia lacrimal que não entendo nem controlo.  Também há muita coisa que não entendo nem controlo. Cada vez sou mais desapegada. Cada vez mais, menos. 

Só queria conseguir chorar.


1,43 / casa / no silêncio

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

O Mundo da Luzinha, porquê?

    Depois de uma Luz, onde o nosso mundo se recurva e vira do avesso, surgiu a necessidade de convergir a experiência da maternidade com tudo o que estava relacionado com o "velho mundo". Apesar de me sentir mãe da Luz muito antes de ela nascer, eu não me comportava como tal. Quando a Luz nasceu, as minhas rotinas alteraram-se de todas as maneiras, mas os meus gostos, não. Eu não podia deixar de ser eu na sua totalidade. A minha essência tinha de se manter: a minha música, as minhas letras, o gosto pela pedagogia, a minha arte. E como fundir agora todos estes gostos antigos sem me perder, sem me recalcar mas, ao mesmo tempo, sem beliscar em nada o lado maternal que tomara conta de mim? 

Tive de unir todos estes pontos:

Nasceu "O Mundo da Luzinha".

    A minha proposta é a de levar a mãe ou o pai, o professor, o educador ou simplesmente o curioso a debater-se com novas perspectivas que ampliem a experiência musical de forma a torná-la mais rica e mais completa, em prol do bem estar da criança e da sua estimulação psico-emocional. Não sendo a música unicamente uma experiência estética, é relevante nos tempos em que vivemos, consciencilizarmo-nos sobre as possibilidades da música como recurso pedagógico. Porque a música nasce connosco desde os tempos ancestrais. Porque todos temos música dentro de nós, começando pelo bater do coração. O importante é continuar a dar-lhe voz. É recuperar essa musicalidade que vamos perdendo à medida que crescemos e canalizá-la: fazer da música uma ferramenta ao alcance de todos. A música, como experiência psicológica, pode, na linha temporal,  modelar a personalidade da criança e ampliar-lhe a capacidade sensível e sensitiva. A música pode apresentar-se como escultora de personalidade da criança. E não é isso que queremos para os nossos filhos?


quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Urge a esperança

 São 21.30 

Noite. Depois de jantar. Jantar esse quente. Podia ter sido frio, mas foi quente. Sentada com a minha família, com os meus cães, nas paredes que pintei, nas paredes que me amparam todos os dias na rotina do dia-a-dia, sem sequer me lembrar delas. Sem lhes dar a importância e o relevo que têm. Tenho uma casa. Tenho um lar. E apesar de tudo, tenho um lar.

Estes dias tive a sorte de poder visitar duas instituições que trabalham com crianças. Fiquei maravilhada com as meninas e os meninos que encontrei. Não é que estivesse à espera de outra coisa que não o que me deparei. mas a verdade é que fiquei surpreendida. Algo se moveu dentro de mim. Algo me desnorteou. talvez por ter levado a minha filha comigo. Não houve estranheza rigorosamente nenhuma, nem de um lado de do outro. Com os adultos, isto nem sempre acontece. Mas também não foi o meu caso. Todas as técnicas que conheci são seres especiais que consigo identificar à primeira. São muito mais que técnicas. São além disso, porque sem perder essa vertente da pragmaticidade, de resolver, de dar soluções, acrescentam o valor da humanidade. Um não ocultou o outro. Não perderam a capacidade de chorar. Não perderam a capacidade de se emocionar, por muitos anos que sejam confrontadas com situações terríveis. Parece que, às crianças, tudo ganha maior dimensão.

Afastei-me ligeiramente e absorvi, de longe, tudo o que cabia nos meus olhos. Olhei para a Luz. Fiz um esforço para me esquecer que era minha filha e "misturei-a" naquele grupo. Nada a distinguia. Nada fazia da Luz mais especial do que era. A minha surpresa vem agora. É que cada uma daquelas meninas e meninos tinham luz própria. Eram tão especiais. Tinham tanta individualidade em si. Consigo-os distinguir um a um, Mesmo agora que já passaram dias. Tenho tanta vontade de os abraçar a todos com tanta força. De os apertar contra o meu peito. Queria tanto entregar-lhes algo que os fizesse feliz. É tão importante que estas crianças soubessem que há outras possibilidades, outros mundos, outras rotinas, outras felicidades. Queria tanto que eles tivessem um vendaval de felicidade. Que ficassem submersos num mar de alegria, que se engasgassem de tanta emoção. Estes meninos têm de saber o que é isso. Se não tiverem estas experiências é a mesma coisa que lhes estejam a ser negados momentos de vida. E aqui, falamos de esperança. É urgente a esperança. 



a ouvir: https://www.youtube.com/watch?v=KB6wVyMzdcQ



quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Gesta, porquê?

Abri o "Gesta".
- Estás maluca!
- Numa altura destas?!
- Não tens medo? Será uma boa ideia?
Muitas foram as questões que me colocaram. Muitas duvidas, muitos receios, poucas certezas. É claro que tenho receio, é claro que não sei como vai ser o futuro. Parece que não, mas tenho sentimentos. Sinto, e sinto muito. Mas tenho um lado de loucura e de inconsciência que me tornam consistente. Todos os meus projectos são convergentes. Têm algo em comum, que os unificam e que têm sempre a mesma direcção. Essa direcção só eu sei e não revelo. É o meu segredo. Mas nem é algo muito bem guardado ou de difícil acesso. O porquê de tudo isto, de todo este arco-íris constante, estende-se no tempo. É algo que ficará, depois de eu morrer. Para a Luz, pelo menos. 
"Naquela mesa" é uma das músicas que canto que melhor receptividade tem. O tema de Sérgio Bittencourt , traz um novo olhar sobre a mesa, como objecto. De nostalgia, neste caso. 
Mas, para mim, este objecto, comummente utilizado apenas com a finalidade prática no nosso quotidiano, é um pretexto. "Estar à mesa" é tempo. É partilha. É uma experiência única e irrepetível. É vida. É um dedicação. Neste sentido, o Gesta não é um restaurante comum. O Gesta é um local para se estar, para se conviver. Para partilhar sabores, sons, paladares, momentos onde os cinco sentidos são estimulados. É um experiêcia gastronómica e uma experiência cultural ao mesmo tempo porque enquanto se prova um prato tipicamente português como uma Posta à Mirandesa laminada, ou um Polvo à Lagareiro, está-se ao mesmo tempo a ouvir o que de melhor do Fado se faz no Porto. Sem grandes pretensões, abri este espaço a pensar em todos os meus amigos músicos, em todos os momentos que cruzaremos as nossas vidas, e desta forma, criaremos novas vidas, depois desta. O Gesta não é apenas um restaurante normal. O Gesta é um restaurante com uma sala de ser porque neste restaurante come-se gastronomia portuguesa. Come-se música. Come-se Vida. 
E isto, é impagável.



domingo, 10 de maio de 2020

Boa noite, Valentina

A ansiedade das esperas terminou hoje. 
Esperamos por ti, perdida entre esquinas. Esperamos por ti, amedrontada, mas recolhida por alguém que te tivesse encontrado e acolhido. Esperamos até por um resgate. Esperamos por ti, viva. Ansiosos que o pesadelo terminasse, como se fôssemos teus pais. Empáticos com o sofrimento de quem te ama, a sofrer por um futuro risonho mas que tardou a chegar. Esperamos pelas lágrimas de felicidade de alguém que gritasse ao longe:

- Está aqui! Encontrei a menina! Ela está bem!

Um país inteiro com o coração apertado, ansiosos por uma notícia tua. Mas como poderias? Esperamos por ti como se fôssemos nós os pais. Assim o julgámos. Mas os teus pais não esperavam por ti. 
Tiveste o azar fatal de não poderes confiar em quem te devia proteger: nos teus pais. No teu pai, que te deu a vida, e na mulher que ele escolheu para estar ao seu lado: para fazer também o papel de tua mãe. Tiveste tanto azar, Valentina. 
O pai não tem uma contribuição visceral como o tem a mãe. Não é umbilical a sua relação: é processual. É uma cadência que precisa de tempo para se estabelecer. É até explicável, definível. O pai não te amou desde sempre, desde que soube que ía ser pai. Ele habituou-se à ideia. Precisou de tempo. Foi-se convencendo. Com o tempo, foi imitando comportamentos do papel de "pai", mas sem o sentir de facto. Ora bem, um pai faz isto? Então vou fazer igual. Parecia um pai, de facto. Mas não era pai. Não podia ser pai, porque as suas decisões não era baseadas em amor total. Neste amor indefinível, totalitário, quase egoísta e redundante porque é um amor que só precisa dele próprio para subsistir. Um pai que não bebe deste amor pela filha, não pode ser pai. Só parece um pai. É um pai trôpego, manco. Encostado às opiniões alheias, manietado. Um fantoche manipulado pelo que vê os outros fazer. É um embriagado. Um boneco vazio de sentimento, convencido que convence e por isso, auto-convence-se. 
Se a este ser se juntar uma mulher de igual nível, o resultado só poderá ser desastroso. 
Tiveste tanto azar, minha doce Valentina. Podia ter sido diferente se a tua madraste fosse uma "boadrasta". Alguém que te acolhesse como se fosses sua. Que te ensinasse tudo o que ela tivesse de melhor. Ou pelo menos, que tivesse essa intenção. Alguém que te chamasse "filha de coração" e te explicasse o que isso significa. Uma boadrasta que te quisesse para sua família e que te contabilizasse na hora de tomar decisões. Era isso que merecias, meu amor. Em tua casa juntaram-se dois pólos negativos. Dois excrementos humanos. Duas amostras de "como-não-ser-pai-nem-mãe". Tiveste o azar de se reunirem na mesma parelha dois seres que se auto-masturbam na mesma linguagem de pus e esterco e não podemos imaginar o quanto já deves ter sofrido. Quanta confusão nessa cabecinha. Quantas dúvidas, quanto desespero em tão pouco tempo de vida. Onde estarás tu agora, minha querida Valentina? Que nome tão bonito que tu tens.

Sobra agora a tua mãe. Uma sombra da mulher que foi e que nunca voltará a ser igual. Com certeza, neste momento, a tua mãe é um resto. Uma sombra. Um resquício de mulher. Tal como o amor de mãe é indefinível também a dor de mãe o é. A tua vida não foi em vão, meu amor. E é isto que eu gostava de dizer à tua mãe, se pudesse. A tua vida não foi em vão. E a vida da tua mãe também não.

Boa noite, Valentina.

"As mulheres são fracas, as mães são fortes" - Provérbio norte-coreano


quarta-feira, 29 de abril de 2020

A dança em nós

A menina, apesar de gordinha e sisuda, tinha os mais maravilhosos pés para ballet. A curvatura do pé era tal que partia todas as pontas e, por isso, nunca conseguiu ser bailarina.

A outra menina não tinha curvatura no peito do pé. Não se conseguia erguer nas pontas, nem sequer pôr-se de pé. Mas tinha o mais belo pescoço, a postura mais leve, o ar mais elegante em palco. 

Passados estes anos, ainda dançam, discretas, frente a qualquer superfície que reflita a sua imagem.



29 Abr 20
Dia Mundial da Dança 

segunda-feira, 30 de março de 2020

O doce cheiro a caramelo

Meu amor,

fazes hoje 10 meses. Estava neste momento, há 10 meses atrás, contigo a meu lado, a barafustar com a enfermeira porque estava a morrer de sede e ela não me podia dar água sob pena de vomitar tudo, resultado da anestesia da cesariana. Meia zombie, com um olho aberto outro fechado, tal como hoje, meia zombie, com um olho aberto para o futuro, o do passado, fechado.
Comprei-te livros como prenda. Não sei que mundo te vou deixar. O que era certo ontem, já não é hoje e amanhã há-de voltar a mudar. Sinto-me a planar, sem saber onde pousar os pés porque tudo é areia movediça. Comprei-te livros, meu amor. Ainda é nos livros que mais confio para te deixar alguma sabedoria para aprenderes a planar, rente sobre as coisas: se precisares aterras, se não, continuas a voar sem te magoares. Dom Quixote nasceu com o nome de Alonso. Tu nasceste como Luz: quem te irás tornar? Irás percorrer o mundo como ele? Quem serão os teus moinhos a derrubar? Possas tu viver feliz porque num sonho parece que é onde já estamos a viver. Parece que vivemos dentro de um livro de Aldous Huxley. Escolhe viver dentro de um livro de Garcia Marquez.
Dei por mim a comer maçãs o dia todo. Acho que, inconscientemente, estou a poupar. Ouvi uma senhora na rádio a perguntar se se pode sentar na sua varanda sob o risco de apanhar com partículas infectadas dos tapetes sacudidos dos vizinhos.
Só o teu sorriso me distrai. Só o teu cheiro a caramelo me traz a "casa". Parabéns, meu amor. 10 meses a trazer luz ao mundo.

30/Mar/20
16h49