domingo, 15 de março de 2020

As filhas do vírus

Meu amor, minha Luz

escrevo-te acabada de me sentar no sofá, finalmente, depois de, juntas, termos passado um dia terrível. Escrevo-te porque já te sei no teu berço, a dormir tranquilamente, sem tosse. Escrevo-te como te escrevi as cartas que recebeste pelo correio e que permanecem fechadas até que saibas ler e as abras pelas tuas próprias mãos: com o resguardo do tempo e com a valorização do tempo.
O dia hoje começou bem cedo, pelas 8h30 da manhã, já tu contavas com 38.9 de febre. Liguei à tua pediatra mas como não me atendeu, imediatamente preparei-me para ir contigo ao hospital. Depois de uma semana de febres e tosses e idas a médicos, não podia permitir que este sofrimento te continuasse a invadir.
Estacionámos nas urgências, no mesmo lugar onde outra febre nos tinha levado numas madrugadas atrás. Como se uma repetição se iniciasse. Pediatra, 4º andar. A carta que já vinha de outra médica. Os enfermeiros que se derretem com a tua simpatia. Com os teus dentinhos. Com a tua luz. Fizemos um novo raio x, e foi como se um raio nos caísse em cima:

- Mãe, isto não está bonito. Vocês vão ter de ser transferidas para o S. João.

Senti-me desfalecer por dentro. Por não conseguir ver o limite daquelas palavras. O que queria dizer realmente? Tu permaneceste serena, igual a ti própria. Um farol numa noite escura.
Indicaram-nos um quarto com uma parede de vidro por onde pudemos observar todo o plano de desinfecção no caso de suspeita do novo corona virus.

- Mãe, já percebeu não já?

Já, já percebi. Só faltava pegar fogo aos locais onde nos tínhamos sentado. Passado algum tempo deixaram-nos sair pelas traseiras do hospital, com uma enfermeira a acompanhar-nos até ao nosso carro.

- As melhoras - disse ela.
- Obrigada.

A tua avó trouxe-nos ao hospital e tratou das papeladas iniciais enquanto te trocava a fralda, resguardadas no carro, de uma chuva molha-tolos, num dia tolo, num mundo de tolos. Uma chuva redundante e desnecessária portanto. Éramos tratadas à distância, mas com simpatia. Depois das perguntas, de nos tirarem a febre, fomos para a ala dos não-validados, apesar de ter estado em Madrid há umas semanas atrás. Sem sintomas e depois deste tempo todo, pelo que parece, não constituí uma probabilidade. Primeira vitória. Não tínhamos o vírus.
A médica que te viu encantou-se com o teu cabelo e com a tua serenidade.

-Tenho um de 10 meses mas é um pequeno terrorista. Era impossível ele estar esse tempo todo ao colo, tão calminho.

Sorri com ternura pensando na sorte que tinha em seres minha filha e não outra criança qualquer.
Em seguida, colheram o sangue da tua mão e ficámos horas à espera. Durante essas horas, consegui sempre calar o meu desespero interior. Em nenhum momento hesitei. Não cedi aos meus medos. Nem me lembrava deles. Sentia-me alerta, em posição canina de avançar contra qualquer vírus, contra qualquer doença que aparecesse. Sentia-me com uma força imensa e a tua serenidade dava-me ainda mais força. Eu alimentei-me da tua força vertical, da tua integridade no sofrimento, da tua coragem de carvalho: uma árvore que não se deixa abater. Se tu estás doente e não vais abaixo, não vou ser eu, a tua mãe, que vai. Tu obrigas-me a elevar-me.
Atravessámos o hospital para tentar comer alguma coisa na máquina das sandes, eram umas 17h. Um café directo nas veias. Tu, no entanto, não aguentaste a papinha e vomitaste. Foi este momento que mudou um pouco o teu diagnóstico: só te dariam alta quando conseguisses segurar o que comias.
Conhecemos a cigana e o seu filho com paralisia cerebral de 7 anos e corpo de 4, desempregada e sem ter quem a viesse buscar. O hospital, sem meios nem recursos para lhe resolver o problema, passou a solução para as mãos dos pacientes que, atentos, lhe ouviam a história:

- Fique com estes 30eur para o táxi, para voltar para casa.

33 anos, viúva, 5 filhos. A mais velha com 20 anos, o mais novo, este, com 7.

Meu amor, tenho medo de morrer e não termos tempo para nos conhecermos. Eu sei que tu não és minha, não me pertences. És do mundo. E mais certezas tenho quando vejo o mundo a interagir contigo. Gostava que soubesses olhar para as pessoas com olhos de ler por dentro. Não dos que leêm por fora, esses são fáceis de enganar. Gostava que fosses uma menina que interage com as pessoas livremente, sem preconceitos, nem pretensões ou julgamentos. Gostava que reconhecesses uma cigana pela cultura e musicalidade a dançar. E que soubesses facilitar a vida de uma jovem que, aos 33 anos, tem de carregar o filho de 7 porque ele não se mantém em pé e respira por uma sonda.
Passaram-se cerca de 7 horas. A tua infecção pulmonar está perto do fim, dizem-me . Mais dois dias, que não se pode fazer muito mais, que estas infecções têm-se estendido mais do que o normal e tal e tal e tal. Uma frustração.

Conduzo o carro da tua vovó que nos veio buscar, e rasgámos a noite escura que nos envolveu o dia todo, em direcção a casa. Quase a chegar, ao dar uma curva, deparo-me com um parque de estacionamento vazio e sombrio e, no meio dele, como que a palpitar, surge uma magnífica roulotte de farturas. Como uma zombie que acorda feliz, dirijo-me de imediato e peço farturas, churros de nutella, farturas com doce de ovos, enfim, tudo o que faz mal e não pediria noutra altura.
Por que é que te estou a contar isto, meu amor?
Porque passei o dia a lutar. Pronta para o combate. A resistir a cada machadada que a tua tosse provocava no meu coração e quando vi as cores da roulotte, as luzes coloridas da montra, a música que saía do aparelho de som, tudo isto a reluzir como um tesouro no meio de um parque escuro e decrépito, deixei que finalmente, as lágrimas me caíssem pela cara abaixo. Esta ironia explodiu a minha barragem, meu amor. Este contraste quebrou o meu gelo e derreteu-me no mais improvável lugar. Uma roulotte de farturas foi o gatilho que eu precisava para soltar toda a angústia que vivi no dia de hoje porque, no limite, no extremo dos extremos, isso poderia significar perder-te.
Gostava que soubesses gerir as tuas emoções para, pelo menos, teres tempo de chegar a casa e não te veres em situações embaraçosas onde tivesses de explicar por que razão começaste a chorar, como por exemplo, em frente a uma roulotte de farturas.
 Amo-te meu amor, minha paixão, minha "munheca" linda.
Saber-te a dormir descansada, em casa, protegida, junto a mim, é um pedaço de felicidade que se pudesse pendurava num fio de ouro ao pescoço.


15 de Março 2020
domingo
00.15

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